segunda-feira, 8 de março de 2010

Capítulo 19 ~ Senhor Perfeição

E agora, aqui estou, com um pano nas mãos, enxugando e guardando tudo. Começo a imaginar que seria uma boa idéia trocar toda a louça de jantar por algo descartável.

— Aqui, chérie – Victoire me passa uma travessa.

Enquanto enxugo, penso onde estaria a nossa pequenina Lise, desaparecida desde que alguém disse que tínhamos um lindo quintal. Estou com medo por meus coelhos, espero sinceramente que ela não goste de animais.

— Bom… e tudo bem com você?

— É, sim, tudo ótimo – ou melhor, espero que goste. Já pensou o que faria com os pobrezinhos? Nada mais me vem à mente senão meus filhotes pulando com bombinhas amarradas no rabo.

Vejo Victoire fazer uma pausa pensativa e noto não estar atribuindo à ela uma conversa fácil. Melhor prender minha atenção nela. Se toca Lune, se toca.

— Você não ficou… bem, mal com o fato de eu e seu pai… bem, ficarmos juntos, ficou?

— Ah, não – pretendo mesmo parar por aí, mas não sei por que, de repente vejo as palavras simplesmente se formarem na minha boca – quer dizer, ele gosta de você, eu quero que meu pai seja feliz, mesmo que não vá ter tanto tempo mais para mim…

Percebo o que falei e sinto minhas bochechas corarem. Ela solta uma risadinha divertida enquanto me sinto uma ridícula egoísta.

— Ora, bobagem, nós apenas vamos nos juntar a vocês, mas ainda vão continuar juntos – ela sorri e olha para mim. Eu tento dar um sorriso largo e sincero, mas talvez não tenha sido efetivo, pois ela continua – é, tudo bem, sei que não vai ser a mesma coisa, também não vai ser o mesmo para Luan e Lise.

— Luan parece estar lidando bem com a situação – faço uma pequena observação pensando falar baixo e, logo depois, descubro não ter sido o suficiente. Tá, que mal há nisso? Claro, soou de uma forma meio… admirada, mas foi totalmente involuntário.

— Ele sempre lida bem com tudo – ela ri.

Ah, claro, ele é o senhor perfeição, agora cheira minha bunda.

Desculpe a alteração de humor, é que está meio abafado aqui.

Caímos no silêncio. Só o som das louças se batendo na pia ecoava, de uma forma meio desconfortável.

— Eu não posso imaginar como teria sido a perda de Mathieu se Luan não estivesse conosco – ela solta, com uma voz meio carregada. Victoire ter dito algo assim foi completamente inesperado, quer dizer, estava ali, feliz, e de repente me olhou e mandou essa. Na real, fiquei com a impressão de que só desabafou porque parou os olhos em mim. Mas, para variar, devo estar viajando.

Depois dessa confissão, fiquei sem reação a ponto de me desligar totalmente da tomada. Literalmente entrei em off. Se esse Mathieu é quem eu penso que é – ou foi –, absolutamente não se trata de um assunto feliz.

— Mathieu era seu marido? – pergunto com voz mansa e ela afirma com a cabeça, fitando a travessa em suas mãos e quem pareceu entrar em off desta vez foi ela até que, de súbito, assume um sorrisinho amargo no rosto.

— Luan foi forte – ela soltou e voltou-se para a pia – ele adorava o pai, viviam juntos… foi um choque para todos quando faleceu.

a variar, devo estar viajando.
oroso).
— E como ele… morreu? – idiota, seja mansa e cuidadosa, uma vez na sua vida.

— Ah, um tumor no cérebro – ela prossegue ainda mais comovida – nós sabíamos, buscávamos cirurgias, mas todas as que nos falavam eram complicadíssimas, extremamente arriscadas, uma série de outras coisas… no fim, não pudemos fazer nada, ao menos com as condições da época. E, de uma forma ou de outra, Mathieu tinha consciência: cedo ou tarde iria acontecer, então preferiu deixar como estava e aproveitar o tempo… restante.

— Deve ter sido horrível – disse, tentando parecer solidária, talvez sem muito sucesso. Ela confirma, novamente com a cabeça.

— Todos sofremos muito. Lise era tão inocente, chorava desesperada me perguntando quem tinha feito aquilo com o pai dela. Eu tentava ao máximo dar apoio para eles, mas mal estava conseguindo ficar em pé. Luan foi maravilhoso, segurou quase toda minha barra e de Lise sozinho. Via o quanto me esforçava tentando ser forte e via quando não estava conseguindo. Passou a fazer coisas para mim, me ajudava com a casa, cozinhava, cuidava de nós duas… ele aparecia todas as noites para ver se eu estava bem, isso depois de colocar Lise para dormir, contando histórias sobre um lugar maravilhoso onde todas as pessoas eram felizes, não existia nada de "feio" ou "mau"… e só quem era muito importante era convidado para morar…

Então, ela começou a chorar.

E eu não sabia o que fazer além de pensar: “merda, merda, merda”.

Não sabia se fazia alguma coisa, se me encantava com a história, ou se ficava no meu canto, esperando ela se recuperar… quer dizer, o que eu poderia fazer? Isso tudo foi meio estranho, ela começou a se abrir comigo do além, cara. Pessoa perturbada. O que eu faço, o que eu faço?

Após refletir por alguns instantes, decido que preciso tomar uma atitude (jura?). De uma forma desajeitada, toco gentilmente seu braço, seguindo algum tipo de instinto. É, algo me dizia que, se eu encostasse sua pele, tudo ficaria melhor. De fato, não sei como, esse gesto simples surtiu efeito, pois quase instantaneamente Victoire passa a sorrir, mais nostálgica do que nunca.

Sim, sorrir. Abertamente. Fiquei com medo de ela ser bipolar.

Foi bem estranho, na verdade. Quando toquei seu braço, senti como se uma espécie de energia fluísse de mim. Victoire também, para ajudar, assumiu uma expressão diferente de um segundo para o outro, aliviada, o tipo de expressão que vemos nos sofredores quando injetamos morfina neles.

Sim, eu sei. Bizarro. Como tantas outras coisas ultimamente.

— Sabe o que Lise sempre perguntava? – indagou de repente, sorrindo para o alto e secando os olhos. Respondi que não, óbvio, e ela esticou ainda mais os lábios, bem esquisitinha.

— Ela perguntava: "O papai foi pra lá, Lu?". E ele respondia: "Mas é claro! E foi chamado com tanta urgência que nem precisou ficar velhinho".

Sério. Alguém me responde: quem é esse cara? Ele não pode ser normal.

— Eu sinto muito… – digo depois de muito tempo em silêncio – mas é uma história linda, se é que isso não lhe ofende.

— A perda de Mathieu foi incurável… mas não me ofendo, ao contrário, reconheço. Por que só coisas felizes podem ser bonitas, a final de contas?

— Quantos anos ele tinha? – digo, finalmente me sentindo segura para libertar essa pergunta, engasgada há tanto tempo – Luan, quero dizer.

— Treze.

Eu aceno com a cabeça, apenas para mostrar que ouvi.

Agora, pensando certinho, estou me sentindo mal por todas aquelas coisas de antes. Victoire conseguiu mudar tudo o que eu pensava sobre ela e sua família, apenas contando um pedaço da sua história. Um pedaço incrível.

Então, me surpreendo com o que salta em minha mente: eu quero conhecê-los.

Veja só: eu, Lune, a rainha do desinteresse e do desapego, quero conhecer alguém.

Revolução.

— Vocês serão muito bem vindos à nossa família – acabo por dizer mais como uma auto-confirmação do que uma palavra de conforto. Entretanto, Victoire enche o peito de alegria e se atira em volta do meu pescoço.

Foi estranho, foi inesperado. Mas foi completamente legal da parte dela. Eu mesma me deixei contagiar pela emoção da mulher e respirei feliz. Desamarrando o avental, ela se vira e diz, com um ar diferente:

— Só espero que você e meu filho se dêem melhor do que você e minha filha.
Sorrio sem graça e ela pisca para mim.

— E ele é bonitão, hein? Puxou a mãe – conclui.

Mais tarde, no meu quarto, as coisas parecem começar a se encaixar. Meu pai estar namorando, meu pai estar namorando uma moça legal, meu pai estar namorando uma moça legal com filhos, meu pai estar namorando uma moça legal com filhos os quais: um parece ser perfeito e conhece minhas orelhas e a outra é, no mínimo, a personificação da antipatia.

Levanto da cama e abro a porta da sacada, indo calmamente até a grade. Olho lá para baixo, onde estive até uma hora atrás.

Eu estava ali, com Luan e sua irmãzinha esquisita. Certo, quem sou eu para chamar alguém de esquisita. Mas o que quero dizer é… eu não consigo sacar qual é a dela. E, a propósito, eu estava certa quanto à Lise não gostar de animais. Bom, não sei se não gosta, apenas não deu atenção a eles. Apenas usou o jardim e os coelhos como desculpa para meter o pé e telefonar para uma de suas amigas.

"Ela é meio estranha, tem olho amarelo e um cabelo prateado lambido".

"Não, não é olho castanho, é amarelo".

"Manon, você está me ouvindo? Eu disse amarelo".

É.

Ela vai ver quando trouxer as amiguinhas para a festinha do pijama e eu colocar um besourinho bonitinho lá.

Luan também, apesar de todas as coisas boas que espalho sobre ele, é um cara estranho. E provo. Por exemplo, depois de toda a limpeza da cozinha estar terminada e Victoire ter ido lá para cima, com meu pai, decido ficar por ali, sentada, pensando na vida, sossegada. Até Luan entrar e me dar o pior susto, sei lá, da minha vida – sim, é claro que é mentira, só estou colocando nele a culpa para poder atribuí-la à alguém. É que, novamente, os cosmos querem sacanear a garota sinistra e aí decidem fazer a porta dos fundos se escancarar num tempo praticamente simultâneo com o susto besta de Luan. Até pareceu que a porta assustou-se também.

"Acabou o jogo?" – eu e minhas formas lesadas de iniciar assuntos. Ele puxa uma cadeira e se senta folgadamente.

"Não, mas quis deixar minha mãe e seu pai sozinhos um pouco", disse, pegando uma bolacha de dentro do pote em cima da mesa e enfiando na boca. Com um ar alegre, olhou para trás de mim: "esta sua porta está possuída?".

Eu não entendi, primeiramente, sobre o que estava falando, mas quando direcionei minha atenção para onde Luan apontava, deparei-me com uma porta meio louca. Tipo, batendo na parede sozinha. É, tinha até um ventinho, eu sentia, mas não parecia nem de longe forte o bastante para mover nada. Ao menos para nós, ali na mesa.

Falando bem sério, eu não estava num bom juízo para sentir coisas seguramente, então não acreditem na minha narrativa. Meu coração ainda estourava quase no ritmo da porta, ou igual, nem estava ouvindo direito também. Ele, claro, estava se lixando para meu nervosismo tamanho. Já deve ter passado por muitas situações como essa na vida, com todas as garotinhas que, bem, deve ter pegado por aí.

Eu acho.

Pra quem sempre foi chamada de "a garota que se acha adulta", estava me saindo uma bela menininha na questão sexo oposto.

Mas afinal, que culpa tenho? A vida é feita de experiências, se eu nunca passei por alguma, devo agir como se fosse expert?

Tá, mas não dá.

"Onde está Lise?" ele fala, olhando ainda desconfiado para aquela coisa batendo insistentemente, parecendo querer ultrapassar a parede. Só então me lembro de sua irmãzinha e decido procurá-la.

Sem dúvida, criaturas peculiares.

Penso se será difícil me acostumar com essa nova situação. Acho que por minha vida ter sido "igual" durante tanto tempo, não tenho facilidade para me adaptar à novas circunstâncias. Por outro lado, lembro do que senti naquele momento com Victoire, na cozinha. A vontade de conhecer sua família melhor, saber sobre suas vidas, seus sonhos… não é todo dia que me envolvo com outras pessoas… geralmente as pessoas com quem converso são Nara e meu pai. E… se por acaso eu admitisse estar feliz apenas com Nara e meu pai, estaria mentindo. Eu sinto falta de pessoas, sem dúvida. Talvez seja esse o porquê do interesse em Victoire, Luan e até mesmo Lise. Oportunidade de me envolver e valorizar mais alguém.

Volto minha atenção para a paisagem noturna. O céu está iluminado, a Lua bem em frente à sacada. É gostoso sentir a noite assim, com ela roçando no seu rosto. As estrelas piscam pra você como quem diz que, não importa o que aconteça, sempre estarão ali.

De uma forma meio repentina, me sinto nostálgica. Lembro de uma noite, há muito, muito tempo atrás. Nem sei quanto exatamente, só me recordo ser criança. Estava parada numa calçada com alguém ao meu lado, não tenho certeza quem. Eu olhava incansavelmente para o céu escuro, como se buscasse algo especial nele, mas tudo estava assim, escuro, brilhante e tranqüilo. Só… lembro de sentir saudades… de nada. Só sentia. Meu colar pesava no pescoço… talvez para a visão de uma criança ele pesasse muito mais do que agora. Mas machucava. Então, do nada, a pessoa sombria ao meu lado puxa meu braço com uma força desnecessária a fim de seguir em frente e continuar nosso caminho.

Um comentário:

  1. Nossa, a irmã do Luan é totalmente antipática, ein? Quantos anos ela tem? Imagino ela como uma garotinha de 11 anos arrogantezinha, rs.

    :*

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