terça-feira, 6 de abril de 2010

Capítulo 27 ~ Pacto

Nienna… Nienna…

O tempo se aproxima…

Mas ainda não é hora de saber…

— Bom dia…

— Bom dia, meu anjo – papai diz, jogando três pãezinhos de chocolate sobre meu prato. Uma prova de que ele está mesmo tentando me agradar, ele nunca, nunca, compra pães de chocolate pro café da manhã. Mesmo não sendo tão manhã assim.

E ele me chamou de anjo. O caso é sério.

— Dormiu bem, chérie? Tudo bem? – acrescentou com um sorriso.

— Sim, só um sonho estranho – respondi sonolenta.

— Pesadelo? – pergunta, interessado.

— Não… só estranho. Algo como uma mulher sussurrando alguma coisa.

Não que eu tenha visto a mulher. Na real, não vi absolutamente nada, pois estava dormindo demais até para isso.

— Você está bem, meu amor? Melhorou? – papai fala com a voz tensa e vem até mim para colocar a mão sobre minha testa.

— É, é, tô bem sim – digo distraída, pensando se já não acabei de responder essa pergunta. Acho que não.

Esses pãezinhos estão realmente bons.

Enquanto penso nisso, vejo Victoire passar ao meu lado, com uma camisola de seda.

— Bom dia Lune, tudo bem? – ela diz carinhosa.

— Bom di… – nessa hora eu engasgo quase cuspindo todo o chá da boca. Por sorte, apenas uma gota escorre até o queixo.

Claro, uma reação completamente exagerada, devido ao meu atual desequilíbrio mental. Afinal, eles são adultos, pessoas feitas e namorados, sim. Aceite isso, Lune, sua tonta, e limpe a baba escorrendo.

— Papai, se importaria se eu fosse comer na sala? – tempo pra pensar, é só o que preciso. Acalmar os nervos, dar uma relaxada enquanto assisto desenho. Talvez cantar um pouco.

— Ah… – ele me deu uma boa olhada curiosa, mas apenas concorda – claro que não, amor, pode ir.

Meio atordoada, pego meu prato, dou um sorrisinho para os pobres apaixonados e me dirijo até a sala do andar de cima, que é o lugar mais distante possível. Eu sei, eu não deveria ficar assim, mas será que não dava mesmo para ir com um pouco mais de calma? Ah, tudo bem vai, eu acabei de passar a noite num hospital, a vida sexualmente ativa deles é momentaneamente irrelevante.

É.

Subo a escada praticamente de olhos fechados, por causa da fadiga emocional. Realmente, acho que não estou bem. E sabe o pior? É que não faço a mínima idéia do porquê. Claro, eu sei que estou cansada por causa da noite no hospital, mas estou falando de algo mais profundo, não físico. Ah, que se dane, eu não estou me sentindo em condições de pensar sobre o motivo de todo esse saco cheio. A verdade é essa, estou de saco cheio. E estou com raiva, sei lá do quê. Certo, raiva é exagero, talvez eu nem tenha a habilidade de sentir raiva. É apenas meu humor ácido, por culpa do estresse e da péssima noite de sono. É isso.

Chegando aos últimos degraus, começo a cantarolar, e me sinto um pouco melhor. Largo o prato e a xícara sobre a mesinha e me jogo de costas no sofá, massageando os olhos. É confortável ficar assim, com as pernas penduradas. Me estico para ajeitar o pescoço na almofada próxima, por pior que ela seja. Eu jurava que tínhamos almofadas macias.

Que noite horrível. Tudo está totalmente vago na minha cabeça e cada lembrança é como se fosse um flash com significado isolado. Não tenho a mínima idéia de como fui parar naquele hospital, meu Deus. Eu lembro… eu lembro… ah, eu não lembro de nada além daquele avental ridículo e de Luan.

Aliás, do sorriso do Luan.

E agora, acordo e descubro que meu papaizinho e Victoire, mãe do cara que me deixa débil, já passaram para o nível superior, que inclui passar a noite juntos aqui, na nossa casa.

Aperto os olhos mais forte.

— Que vida…

— Reclamar da vida não é eticamente correto.

— E quem se importa? – respondo sem ter a capacidade de me mancar.

É, apenas alguns milésimos de segundo depois, pulo para o canto oposto do sofá, olhando sem acreditar para sobre o quê eu estava deitada.

Ou, seria melhor, quem.

Claro. Claro! Quem mais poderia? Ninguém mais que Luan, o próprio, sentado relaxadamente logo ali. Olho para sua coxa, ex-almofada dura e desconfortável, e acho que nunca fiquei tão vermelha na minha vida.

Ah, minha fadinha mágica, por que COMIGO?!

— Você deve pensar que os necessitados da África estão bem piores que você. Isso não é certo.

— Ah, Luan, desculpe… – digo com a voz tremendo e com o peito arfando, ainda sem acreditar.

— Não por mim. Deveria ajoelhar e pedir perdão a Deus, por sua ingratidão.

Esse cara é esquisito. Eu levaria isso em conta se não estivesse ocupada tentando não suar o sovaco.

Sinto muito, eu quis dizer axila.

— Desculpe por não ter te visto aí – falo com uma voz aguda involuntária.

Muito, muito envergonhada. Totalmente envergonhada. Bizarramente envergonhada. Fo… deixa pra lá. Luan apenas sorri e volta sua atenção à televisão, mudando os canais.

— O que está fazendo aqui? – solto num tiro, com os olhos ainda arregalados e os dedos agarrados na borda do sofá, de uma forma meio lunática.

— Ora, eu dormi aqui. Todos dormimos – ele diz confuso, apontando pra Lise que acaba de cruzar o corredor ao fundo com uma escova de dentes na boca – não se lembra?

Ah, eu lembrei, claro que eu lembrei, óbvio que eu lembrei. O QUE VOCÊ ACHA?

Houve alguns segundos de silêncio até eu me lembrar de que ainda é sexta-feira.

Poxa vida, preciso ligar pra Nara. E de uma aspirina.

— Você não deveria estar na escola? – pergunto sem pensar muito.

— Tanto quanto você – ele sorri e responde – aliás, menos do que você, já que seu sono foi bem extenso se contar as horas de desmaio. Pense só, eu fiquei ali, o tempo todo, guardando seu sono como um cavalheiro preocupado. Mamãe foi muito legal em dar a todos um dia de folga. Eu não mereço um dia de folga? – ele conclui, forçando uma expressão falsa e totalmente encantadora em minha direção, com as sobrancelhas arqueadas num ângulo doce, de dar dó.

Nem preciso dizer que precisei usar todo o meu autocontrole para não puxá-lo para o colo e lhe dar carinho.

Meu Deus, ele é tão… aaah!

Sem saber como soltar uma sílaba sequer sem evidenciar a minha admiração, apenas balanço a cabeça. Ele sorri, ainda olhando para mim assim, com a cabeça meio caída para um lado, e, com uma voz rouca, suave e perfeita, pergunta:

— Ei, você vai comer aquilo?

Ele poderia ter me pedido qualquer coisa, qualquer coisa, que eu teria realizado seu desejo sem pestanejar. Vejo meus pães deliciosos, derretendo chocolate, esfriando. Nego com a cabeça e passo o prato de boa vontade, alegre por poder deixá-lo contente. Observo Luan separar o que já estava mordido e, depois, começar a comer. Penso se o separou por que tem nojo de ingerir alguma possível baba minha. O que não seria promissor para, sabe como é, oportunizar um futuro beijo.

É simplesmente impossível não admirar esse cara. Não digo apaixonadamente desta vez, mas frustradamente. Quer dizer, ele está pela segunda vez aqui, casa de pessoas que conheceu a menos de uma semana e está agindo como se morasse aqui há anos. Eu nunca conseguiria. Bom, vendo pela sua aparência – cabelo amassado, calça jeans surrada e uma camiseta azul escura com um rasguinho no ombro – eu diria que está é se sentindo em casa.

Incrível é como ele não consegue deixar de ser lindo. Eu não consigo despregar meus olhos dele.

Está calor aqui não está?

— Está tudo bem? – ele diz de repente, meio confuso – está doente?

Paro de me abanar.

Muito gentil, ele levanta e caminha até o vitral do outro lado da sala. Atrás da sua camiseta tem uma estampa da Madonna, mas optei por não comentar para não deixá-lo constrangido. Ele abre a fechadura e, com a maior facilidade, levanta o vidro gigantesco que eu sempre peno pra conseguir mover do lugar. Quando sinto a brisa chegar no meu rosto, a única vontade que tenho é de levantar e me deixar levar por ela.

Fale a verdade. Tem coisa melhor do que acordar, abrir as janelas e sentir o vento fresquinho da manhã balançar os cabelos? Para mim, existem poucas coisas mais agradáveis.

Então me lembro de que não estou sozinha na sala e devo estar com uma cara muito aérea. Abro os olhos e tenho certeza que até minha testa está vermelha. Enquanto isso, lá está ele, encostado na janela e sorrindo divertido.

— Você é uma criaturinha bem interessante, Lune Noire.

E volta para o sofá, para terminar de comer.

O que eu poderia fazer?

O mesmo que toda garota apaixonada faz em momentos como este.

Sorri.

Logo depois nós nos infiltramos numa discussão acirrada sobre o destino do pãozinho comido. Eu disse que não queria, pois não estava com fome, mas ele se irritou, pegou metade dele e enfiou na minha boca, alegando que perdeu a oportunidade de comê-lo por minha culpa, pois acreditou ingenuamente que eu ainda o desejava. Morreu de rir quando engasguei e quando tive que beber metade do meu precioso chá de hortelã sem nem sentir o gosto, apenas para conseguir respirar de novo. Quase o matei com a almofada.

Qual é. É óbvio que tá rolando um clima. Ainda mais agora, que conheço o motivo da rejeição ao pãozinho mordido. E não tinha nada a ver com minha baba.

Pensando bem, ele não faz o tipo que liga muito para a baba de garotas. Safado sem vergonha.

— Olá! – um coro histérico explode na minha porta mais tarde, naquele mesmo dia.

Estava rolando um clima.

Maldita porta com vidro. Não pude nem ter tempo de correr. Quando vi aquela turba estranha e disforme se aproximando da minha varanda, era tarde demais. Elas reconheceram minha luminosa cabeleira loura e começaram a gritar. Foi tipo cena de filme sabe? A mocinha encontra-se sozinha no local e, de repente, avista um vulto enorme e suspeito crescer atrás do vidro… ela se aproxima lentamente, com a tradicional expressão de "mas que mer…" quando, então, a porta se abre e o monstro pula, com gritos ferozes e garras afiadas e…

Cabelos escovados, sorrisos brilhantes, olhinhos luminosos e delineados.

Eu preferia que fosse o Freddy Krueger. Pelo menos, se ele aparecesse, significaria que eu estaria sonhando.

Mas, o que se pode fazer?

Uma… três… mais Nicole e Chantal… é, é um grupo forte. Bons adversários, bons. Creio que não conseguirei sozinha. Terei que ceder ao jogo do inimigo, momentaneamente.

— Oi meninas! Que surpresa! – sorria Lune, sorria, eu sei que você pode.

Sorri.

Não consigo pensar em mais nada além de matar a infeliz alma que levou toda aquela turma até meu lar.

E matar todo o resto também.

— Lune! Que bom te ver! – a inimiga ruiva dá um passo perigoso em minha direção. Atenção, você está invadindo meu espaço!

— Oi, Chantal – respondo com um sorrisinho forçado. Imagino uma pequena Lune sentada no meu ombro, gritando, com as mãos na cabeça: "Meu Deus! Tirem essa piranha daqui! Meu Deus! AAAH!".

— Lune, será que podemos entrar? – a lourinha passou à frente, com toda a sua franjinha retinha e cílios viradinhos, que gracinha, tchutchuquinha. Pelo menos ela não faz o meu alarme natural antifalsidade querer explodir de tanto berrar. Ela não esconde sua frieza sombria e macabra. Mas não, não esquente, eu sou uma escultura de gelo em pessoa.

Pelo menos tento. O maior problema, na verdade, é que minha bondade canônica é maior do que deveria.

Dou de ombros e, quando me dou conta, as vejo empilhadas na sala de estar.

Nicole. Você tem uma pedra de gelo no lugar de um coração. Chantal… você não tem coração.

Quando ia fechar a porta, percebo que quase a acertei no nariz de alguém. E, para minha surpresa, foi a pessoa que eu menos esperava ver acompanhada de meninas feito elas. Nara vem até mim, com a culpa tatuada na testa. Se ela tivesse um rabo, poderia apostar minha vida que ele estaria entre suas pernas.

Ah, Nara, você me paga.

— Lune, Luan não está por aqui?

Por sorte, isso pareceu mais importante que o olhar em brasa que eu dirigia à Nara. O encaminho para a garotinha sentada no braço do meu sofá, com as perninhas cruzadas e a saia obviamente dobrada na cintura para que as coxas aparecessem.

Eu poderia ter dito que não. Poderia ter dito qualquer coisa, que ele saiu, está no banheiro, dormindo, ou que morreu.

Mas eu virei as costas e subi as escadas.

Enquanto subia, usava o meu par de neurônios (sim, devem ser um par, só pode) para arquitetar um contra-ataque infalível. Mas, lógico, eu não conseguiria sozinha. Esbarrei em Lise, no último degrau.

Confesso, a primeira coisa que pensei foi algo do tipo: Lise sentada no sofá, conversando amigavelmente com as visitas, pois se merecem.

Mas, quando ia passar por ela, ela deu um passo, parando exatamente em minha frente. Foi aí que pude fixar meus olhos nos seus.

"Ondas", se é que me entendem.

Essa garotinha pode ter todos os defeitos do mundo. Pode ser arrogante, metidinha, orgulhosa e me odiar ao infinito. Mas tem uma característica peculiar e que me atrai demasiadamente: defende o irmão como um leão defende uma metade de zebrinha.

Não que ela tenha dito algo. Nenhuma de nós duas soltamos uma palavra sequer para fora da boca. Não foi necessário. Quando uma faísca se cruzou em nossos olhares, um pacto silencioso se selou entre nós. Sorrimos uma para outra e ela disse: "eu vou chamar".

"Maninho, tem algumas meninas lá em baixo querendo te ver".

"Meninas?".

"Sim, muito agradáveis e bonitas".

"Você vai aprontar alguma não vai? Diga que já vou descer".

É por essas e outras que digo que é importante conhecer cada membro da família.

Desci cantarolando.

— Onde está? – a mesma garota pergunta.

— A irmã dele foi chamar – respondi distraída. Ouviu-se um "aaaah, que gracinha!" geral no aposento.

Meio que senti pena de Lise quando desceu, pois a situação se agravou significativamente. Todas iniciaram um processo insuportável de bajulação: "oooh, como você é linda!", "você é a cara do seu irmão!", "que fofinha!".

Bando de interesseiras.

Mas, sabe que eu tenho a leve impressão que Lise está adorando isso. Ao contrário de mim, se ela tivesse uma submetralhadora em mãos, não fuzilaria todas elas. Não, acharia algo mais cruel.

Pensando assim, começo a ficar com medo dela.

Alguns minutos depois Luan desceu. E o cretino estava um gato.

5 comentários:

  1. AHH!! Eu quero mais, muuuito mais!!! Gostei da Lise, querendo proteger o irmão!! E isso eh bom pra lune tbm!! haushsu!! Quero mais!!!

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  2. Ah, minha fadinha mágica, por que COMIGO?! - Como uma pessoa dessa ainda tem coragem de reclamar?? Poxa vida eu sentei na sua coxa, me desculpe!! Bem que falam que Deus não dá asas á cobra!! Fala sério - kkkkkkkkkkkkkk

    Adorei muito mesmo, quero mais!!!

    Bjks

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  3. Eu quero maaais!! por favor!!!!

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  4. Aline tem pós-graduação em tortura de leitores.

    POSTEEEEEE!!!!!!!!

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