terça-feira, 24 de agosto de 2010

Capítulo 39 ~ Nome


“Essa é você”, a voz dizia, sem nexo algum. Eu apenas desejava que ela se calasse.

“Você vai aceitar. Você vai entender”.

Cale a boca.

“Essa dor vem do que você é”.

Essa dor não faz sentido.

“Você não se lembra de quem é”.

Eu me olho no espelho todos os dias.

“Se visse, já teria percebido o contrário”.

Eu sou Lune.

“Você é Nienna”.

— Lune!

De repente, foi como despertar de um sonho.

Alguém grita meu nome, mas antes que eu consiga voltar completamente a mim, uma coisa pequena atravessa minha frente. Talvez seja mais adequado dizer que ela se joga na minha frente. Nós travamos um encontro violento e caio de joelhos no concreto. Antes mesmo de estar consciente o bastante para sentir a dor, ouço risos.

— Isso foi tenso! – Lise, estendida ao meu lado, desabafa entre gargalhadas. Ela ri muito, com as mãos desnorteadas no ar e os cabelos ondulados espalhados pelo chão. Suas bochechas estão vermelhas, talvez por causa da adrenalina. A minha vontade é perguntar se ela tem algum prazer em sentir dor. Porém, se eu abrir a boca, o desconforto instalado no fundo da minha garganta ganhará a liberdade.

Finalmente, Lise consegue não rir o suficiente para ser capaz de me olhar. Na mesma hora, qualquer vestígio de alegria desaparece de seu rosto. Eu imagino o que ela vê. Uma garota caída, de joelhos, agarrada à própria barriga numa posição retorcida. Seus lindos cabelos louros tocam o chão e seu belo rosto está molhado por lágrimas.

Não que eu tenha conseguido chorar. Hoje, mais do que nunca, desejei ter essa capacidade. Mas, não, a água dos meus olhos apenas escorreu com o vento enquanto eu corria o máximo que podia.

— O que foi? – Lise se apóia sobre os cotovelos e não faz questão de se arrumar. Não parecia preocupada com a desordem dos seus cabelos e com as coxas quase inteiramente à mostra, ganhando bastante atenção do grupo de jovens bem próximo a nós. Na verdade, ela parecia não dar a mínima. Mesmo.

Quando ouço o tom preocupado de sua voz, algo em mim desaba. Quando percebo, já estou no ombro de Lise, cansada e sem força nenhuma para continuar agüentando sozinha a dor ainda latejante no meu peito.

Sendo bem sincera, eu esperava que ela me empurrasse ou reclamasse. Mas, diferente do que eu imaginava, além de um singelo “ai, Deus”, ela não protestou nem por um segundo. Pelo contrário: segurou minhas costas sem jeito, num meio-abraço. Lise, a garotinha que eu chamei de estúpida a primeira vez que vi, é quem está aqui, no chão duro de um pátio, me oferecendo seu ombro sem reclamar.

Como as coisas mudam.

— Lune – ela diz o mais mansa que sua personalidade consegue – o que aconteceu? Você está horrível.

Fiz um esforço tremendo para engolir a ânsia. Passado um tempo, consegui diminuí-la o bastante para ser seguro falar.

— Ah, Lise… – eu disse para seu ombro, estranhando o som suave e melódico da minha voz – você nem imagina…

— Tem algo a ver com meu irmão? – ela mandou ver, de uma vez só, tipo um soco no estômago.

Lógico, eu devia ter imaginado. Tapada como sou, deixei muito clara, para quem quisesse ver, minha explosão de sentimentos por Luan. Aliás, não. Tapada como sou, além de fazer isso, ainda acreditei piamente que conseguiria esconder com sucesso alguma coisa. Às vezes eu mesma sinto pena de mim.

Em resposta para Lise, apenas balanço a cabeça afirmativamente. Sim, estou assinando meu contrato de morte. Eu assumo: Lise, estou apaixonada por seu irmão.

— Vamos sair daqui.

Ela me ajuda no trabalho árduo de me levantar e meus joelhos doem absurdamente. Olho para eles e percebo que logo estarão enfeitados com belos e grandes hematomas.

Lise pergunta se há algum lugar mais tranqüilo aonde eu queira ir. Não tenho certeza se o mais agradável seja o mais adequado, considerando que Luan me encontraria facilmente, mas, ao mesmo tempo, não existe nenhum outro em que eu queira ficar agora. Preciso urgentemente sentir o cheiro das folhas e me aconchegar numa grama. Caminhamos em passos lentos para meu habitual cantinho-escondido-nada-secreto-atrás-do-arbusto. Em total silêncio.

Eu fiz isso, não fiz?

Não sei ao certo em qual nova informação devo pensar. Tento, com toda a minha concentração, afastar a mais desagradável delas, a imagem que, a cada flash, me embrulha o estômago e me deixa dividida entre a dor, a raiva e a ânsia.

O maior problema disso tudo é que minha concentração nunca foi grande coisa. Mesmo com todo o esforço possível, só consigo pensar nos lábios de Chantal sobre os de Luan. É horrível. E não deveria ser. Quer dizer, por um lado, qual garota não se abalaria na minha situação? Qualquer uma. Mas a questão não é essa. Não é a perturbação, e sim o tamanho dela. É enorme, é demais, é anormal.

Anormal. Claro que é anormal. Depois de hoje, da reação que tive ao ver aquele beijo, continuar tentando me convencer de que todas as experiências estranhas da minha vida são meros acasos seria mais do que negligência: seria a mais pura essência da ignorância. Seria admitir a existência de nenhuma célula cerebral dentro da minha cabeça – e vale lembrar de que tenho um belíssimo par. Mais tarde espero conseguir convencer meu casal de neurônios a dispor de algum tempo e suor em favor de refletir sobre o transe assustador de hoje, já que, agora, qualquer trabalho a mais sobre eles poderia resultar numa sobrecarga.

— É aqui? – Lise me acorda e, meio atordoada, digo que sim. Ela fecha a cara.

— Você deveria se olhar no espelho. Está numa situação de dar nojo.

— Estou tão feia assim? – pergunto meio envergonhada. Levo a mão timidamente à cabeça no intuito de abaixar alguns fios de cabelo. Pensando bem, não estou muito certa de que quero a verdade.

— Não me faça rir – ela responde revirando os olhos – quem sabe no apocalipse você fique feia, com todo o fogo e as desgraças. O que está ridículo é essa sua expressão de piedade. Se o mais ferrado dos indigentes tivesse algumas aulas com você, em cinco dias suas esmolas o fariam mais rico do que Tio Patinhas.

Ela deve ter razão. Estou mesmo me sentindo digna de piedade, embora ache difícil alguém ser mais rico do que Tio Patinhas. Lise não está feliz com isso. A cada segundo, vejo seu rosto ficar mais furioso. Engraçado. Quando ela franze as sobrancelhas, lembra muito o irmão. E só contemplar essa semelhança já é o suficiente para encher meus olhos de água e fazer crescer o desconforto do meu pescoço… e quanto mais ela se enfurece, mais fica parecida…

De repente, seu pequeno e delicado braço se ergue em fúria.

— EI! – grito, absolutamente chocada, e instintivamente seguro minha bochecha direita, já quente – FICOU MALUCA?

— Não, mas você deve ter ficado idiota! – ela grita em resposta, ensandecida.

— Você me deu um tapa! – deixo a indignação tomar conta do momento. Ninguém nunca me deu um tapa.

Os olhos verdes de Lise parecem queimar. Num instante, minha coragem balança de verdade.

— Escute, Lune Noire, mas escute bem, porque vou falar só uma vez – a pequena criatura à minha frente levanta o dedo indicador e o estica bem em frente ao meu nariz. Meus pêlos do braço se arrepiam com o tom assassino de sua voz – nunca mais quero ver você com essa cara de “pobre de mim”, principalmente quando for por culpa de outras pessoas, qualquer uma. Entendeu?

— É fácil para você falar – digo ainda segurando o rosto e totalmente envergonhada – não era você quem estava lá assistindo aquela louca assediar Luan só por que ela e todo mundo acha que estou perdidamente apaixonada pelo cara – frisei bem a palavra acha, perceba. E não sei por que, sinceramente. Como se adiantasse de algo.

— Não, não era. Mas pode ter certeza de que, se fosse, não estaria aqui escondida numa moita, com ar de “oh, Deus, cura esta ferida, meu coração foi vítima da cruel flecha da dor-de-cotovelo”. A estas horas aquela vaca estaria na enfermaria, implorando para Madame Chercris ajudá-la a colar os dentes de volta na boca.

Olhando para a pequena e, sem conseguir escapar do seu olhar imperdoável, tive, por fim, que admitir a derrota. Ela tem completa razão. Estou fazendo um papel ridículo. Bom, nenhuma novidade até aí. Mas, realmente, não posso baixar a cabeça e continuar agindo como uma injustiçada vítima do destino.

Com muito pesar, é isso o que digo para ela. E por um momento – bem pequeno mesmo – pude ver nela uma expressão doce. Nunca havia percebido como Lise – com seus cabelos chocolate, seus cachos e enormes e soltos, seus olhos e cílios grandes, lábios bem torneados – se parecia com uma boneca. Daquelas caras, de porcelana, com bochechas rosadas. Obviamente essa figura não dura muito, pois logo se notam as meias 3/4 amontoadas sobre o calcanhar, a gravata torta pendente e a faixa suja enrolada na mão esquerda, como uma belíssima delinqüente juvenil. Com covinhas.

— Fico feliz. Você fica melhor fazendo o papel de burra, não de coitada.

Aaah, tá, entendi. Valeu.

Nós nos sentamos desconfortavelmente na grama atrás do arbusto e admiro a cor escarlate dos meus joelhos. Em poucos segundos, me perco em pensamentos. Meu estômago se remexe só de pensar em Luan. Me esforço para não demonstrar nenhuma sensação ruim, Lise não precisa e nem merece, depois de se preocupar tanto com minha auto-estima, ver qualquer sinal de fraqueza em meu rosto. Não sou digna de pena. E nunca vou ser.

Quem sabe, se eu repetir isso muitas vezes, posso passar a acreditar.

— Então foi isso que aconteceu – Lise solta, olhando para as folhas ao nosso lado e coçando a cabeça, desarrumando ainda mais seus cabelos compridos.

— Sim – respondo, suspirando e também olhando para as folhas – aquela maníaca ainda se deu ao trabalho de esperar até eu entrar no campo de visão para poder apreciar a cena.

Lise deu risada.

— Isso foi realmente baixo. Nem eu chegaria a um nível tão medíocre. Quer dizer, só as mais necessitadas precisam assediar um cara para conseguir um beijo e enfurecer alguém. Pena eu não estar por perto na hora, teria arrancado aquela parasita do meu irmão com tanta sutileza quanto se descola uma unha usando uma espátula de bolo.

Uma imagem terrível e dolorosa passa por minha cabeça e eu a empurro para um canto obscuro qualquer do meu cérebro. Por um instante fico em dúvida se conto para Lise sobre meu transe psicótico. Penso em Chantal sendo atirada contra a parede, lutando contra o vento que erguia suas roupas e atirava seus cabelos com violência contra seu rosto. Tudo isso enquanto eu, cheia de sensações novas e sentindo o coração ferver, clamava, desejava, louvava tudo aquilo. Agora, depois da raiva dissipada, me sinto desprezível. E muito satisfeita. Totalmente ambíguo e confuso. Então, voltamos à pergunta: eu fiz aquilo?

Mais ou menos nesse andar dos pensamentos, ouço ruídos do outro lado do arbusto. Sem aviso nenhum, Luan afasta alguns galhos e se faz surgir por trás da planta.

— PUT…! – solto um palavrão que não vale a pena ser descrito. Num movimento de autodefesa involuntário, viro meu rosto para a parede oposta, já sentindo todos os efeitos daquela visão inesperada: falta de ar, dores no estômago, um objeto não identificado na garganta e uma horrível pressão no peito. Não sei em que me concentro primeiro, se no meu coração – que parece querer saltar para a grama e fugir desesperado berrando por socorro – ou se em Lise, sempre com ótimos reflexos, que agora está empurrando Luan para fora do meu cantinho privativo.

— Lise, o que está fazendo aqui? – ele fala calmamente, respirando fundo, como se estivesse em busca de uma grande paciência divina.

— Me certificando de que você também não estará.

Silêncio. Luan bufa.

— Lune, eu preciso falar com você – Luan diz, mal conseguindo me ver, com a voz fraca.

Eu quero falar com você.

— Lune, por favor, será que podemos conversar?

Eu adoraria, é o que eu gostaria de responder. Porém, não posso olhar para Luan e movimentar minhas pregas vocais ao mesmo tempo, não agora. Alguma coisa, lá no fundo, me diz que não posso correr esse risco. A ânsia precisa se manter exatamente onde está. Precisa.

— Garanhão, cai na real, ela não vai falar com você agora – Lise diz, depois de ter o bom senso de esperar para ver se eu estaria de acordo com uma conversa.

— Lune, eu preciso saber como você está… fala comigo – o tom de Luan já era o de súplica. E a cada batida, meu coração doía mais só por não poder ajudá-lo.

Não posso olhar para ele, não posso.

— Qual é Luan, como você acha que ela está?

Obrigada, Lise. Essa é uma coisa que eu gostaria de saber.

— Tudo bem, Lune, você não quer conversar, mas pelo menos me ouça. Eu não tive nada a ver com isso, nunca iria provocar nada assim, eu juro…

— Eu sei.

Sim. Essa frase saiu de mim.

Finalmente encontrei forças o suficiente para falar, mesmo que com a voz melódica, como ocorreu com Lise logo que a encontrei. Mais uma vez me surpreendo com a harmonia dos sons que soltava pelos lábios.

De que forma consegui falar? Bastou não olhar para Luan de forma alguma e não pensar em nada. Mas acho que a maior responsável por esse avanço, foi o orgulho. Eu nunca, nunca poderia deixar qualquer vestígio de falsas interpretações. Luan não pode saber que toda a minha dor vem da simples imagem de seus lábios colados em outros que não os meus. O orgulho, inexplicavelmente, conseguiu transpor os obstáculos.

— Não pense nisso. Não estou assim por sua causa. Apenas estou cansada de ser vista por todos como uma espécie de brinquedo bobo.

Pausa para tomar fôlego.

— Prometo que assim que eu estiver melhor, converso com você.

— Mas…

— Eu vou ficar bem – o interrompo, nem um pouco gentil. Não por impaciência ou irritação. Apenas não sei quanto tempo vou conseguir manter minha voz controlada, sem aquele desconforto atravessado no pescoço.

Por algumas vezes, ouvi inícios de sílabas saindo de sua boca. Porém, nenhuma delas chegou a formar uma frase ou palavra sequer.

Lise, ao perceber meu indício de ponto final, se manifesta.

— Muito bem, a festa acabou, cai fora, bundão.

— O quê? Mas eu preciso falar com ela! – a voz volta à boca de Luan, que tenta retomar o tempo perdido. Ele parece muito confuso.

— Luan! Cai fora!

Agora, Lise parece irritada e, seu irmão, totalmente perdido. Ao mesmo tempo em que parece saber que a conversa acabou, não quer ir embora. Minha vontade sincera é olhar para ele, conversar, explicar tudo o que sinto. Abraçar. Saber o que ele está sentindo.

Luan.

— Lune, não foi minha culpa…

— Culpa? – o tom firme de Lise não permite vacilo. Ela se aproxima dele e fala baixo, com a voz meio rouca, aquelas que fazem a gente se sentir quinze centímetros mais baixo. De alguma forma, essa frase de Luan despertou seu espírito justiceiro.

— Culpa pelo quê? Por ter sido o maior bunda-mole que já inventaram? Que tipo de menininho indefeso você se tornou de repente?

O silêncio impera sobre o ambiente. Meus neurônios trabalham. Lise está falando sério? Ela realmente acha que Luan tem culpa?

Luan tem culpa?

— Você deixou uma ruiva necessitada sexualmente fazer o que queria com você porque acha tudo divertido e agora estão rindo de Lune por aí, isso você acha divertido? – ela continua ameaçadora. Seu irmão não consegue produzir nenhum som. Centenas de questionamentos brotam na minha cabeça.

Segundos depois, ouço passos na grama. Luan está voltando para a sala de aula. Um súbito desespero se instala. Não posso permitir que ele se afaste de mim desse jeito, cheio de incertezas. Não me controlo:

— Luan – me limito a deixá-lo ver o perfil de meu rosto, ainda que apenas por entre a abertura entre os galhos – obrigada por se importar e vir até aqui.

Um silêncio constrangedor se estende até que Lise perca de novo a paciência. Volto a olhar para a parede, mas, mesmo estando longe de poder ver o rosto de Luan, uma sensação reconfortante arrepia meus braços.

Ele quer ficar.

— Agora se manca, irmãozinho. E chame Nara, caso a vir, ela precisa assumir seu papel de melhor amiga. Estou ficando com enxaqueca por causa da frescura de vocês, prefiro a certeza de um murro bem dado no supercílio.

Senti ambos irem embora. Lise, furiosa, obviamente com seu estoque diário de boas ações esgotado.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Capítulo 37 ~ Ânsia

Como eu estou? Muito feliz.

O resto da noite simplesmente sumiu. A única coisa que eu fazia era ficar feito um zumbi olhando para o nada, recordando a sensação maravilhosa dos dedos de Luan circulando minha cintura, o calor vindo da sua pele, o cheiro aveludado da sua roupa, seu sorriso, seus olhos e seus longos cílios.

Os únicos momentos em que eu me esquecia dessas imagens era quando a irritação por Victoire voltava a me atormentar. Ou seja, toda vez que eu ouvia sua voz. “Lune, aceita um pouco disso, meu amor?”, “Lune, gostaria que eu te servisse um pouco mais de suco?”.

Maldição.

Eu sei, ela só estava enchendo meu saco e tentando ser agradável, se redimir pelo acontecido minutos antes. Tenho que levar isso em consideração.

Maldição.

“NÃO, Victoire, não quero mais suco”, eu respondia, sem nem me lembrar de agradecer a oferta. Timidamente, ela baixava a cabeça e voltava a procurar mais coisas pra me socar goela abaixo. E a pobre permaneceu o final de semana inteiro nessa árdua tarefa de me amansar. Lavou minhas roupas, meu acolchoado, tirou o pó das minhas prateleiras e limpou os vidros da minha porta. Consegui pará-la apenas quando a peguei no flagra tentando podar as rosas lindas da sacada.

“O que está fazendo com essa tesoura de jardim, Victoire?”, perguntei, tensa.

“Ah, eu só pensei em ajudar você com essas plantas”, ela respondeu, sorrindo.

“Aham, muito obrigada, mas essas plantas foram presentes de Nara e de várias amigas que já passaram por minha vida, é uma coisa muito especial pra mim, sabe? Inclusive, tenho muitas coisas assim, desse tipo, um monte, um monte mesmo, objetos, plantas, meu peixe, listas disso e eu gosto de cuidar delas eu mesma, saca? Em consideração às pessoas especiais que conheci. Você entende?”.

“Nossa, por Deus, eu não sabia! Me perdoe, é claro que eu entendo!”.

“Mas, muito, MUITO obrigada pela boa intenção! Você está sendo uma ótima pessoa para essa família”.

Os olhos dela brilharam.

“M-meu Deus, você me deixa muito feliz com isso, Luninha!”, Victoire termina, me abraçando forte, verdadeiramente feliz.

É claro que eu estava mentindo.

E, se me permite, tem que ser muito alienado para cair numa dessa. Quer dizer, “presentes de várias amigas que já passaram pela minha vida”? Eu? Qual é, que tipo de anormal acredita nisso? Olha bem pra minha cara. Pif.

Mesmo assim, decidi parar de perturbá-la depois de mandar essa blasfêmia gigantesca. Me ocorreu, em determinado momento, que eu teria que manter o controle para não enlouquecer, já que ela passaria o final de semana inteiro conosco (sim, soube da notícia sábado de manhã, quando a cidadã sem noção disse com um ar inocente: “vou cuidar da casa para vocês esse final de semana, em agradecimento ao seu pai pelo jantar. Pensei em começar a limpeza pelo seu quarto, você tem sido tão amorosa com a minha família, Luninha.”).

Pois é.

Mas, como sou uma pessoa de coração puro, decidi pegar leve por um tempo – grifem esse “por um tempo”. Ela é mesmo boa para meu pai, sabe, o cara está feliz como nunca. Acontece que só levo isso em consideração quando não estou cega por minha frustração pulsante. O troco dela ainda está por vir.

O que importa, no momento, é ver como Luan passou todo sábado e domingo mal conseguindo me olhar nos olhos. Parece que toda sua coragem para se aproximar de mim se esvaiu num único ato – que não deu certo.

Maldição.

Eu mal posso acreditar, nós estivemos tão perto, tão perto…

Claro, afinal, ele já estava com os dedos na minha cintura. Eu não posso ser cínica e burra ao ponto de dizer que não aconteceria nada de estupendo caso Victoire não tivesse aparecido.

Maldição.

Voltando ao ponto: não é loucura da minha cabeça. Ele realmente estava segurando minha cintura e certamente não faria isso se seu objetivo fosse só dizer: “então, tem uma meleca bem gorda no seu nariz”.

Não, com certeza não.

E isso só me leva a uma conclusão: ele ia me… beijar? (Se fosse mesmo uma conclusão, não seria uma pergunta. Acho que devo rever meus conceitos de certeza e incerteza. Dane-se). Continuando. Oh, meu Deus, santa esperança, tomara que sim. Por que Victoire teve que interromper? MALDIÇÃO.

Ah. É verdade. Ela teve que interromper porque se não o fizesse, seria meu pai, e aí estaríamos ferrados. Sim, verdade.

Mas, se ele ia me beijar… (sinto coisas estranhas quando penso nessa palavra) ele podia simplesmente ter tentado de novo.

O.k., a vergonha, blá-blá-blá.

Inevitavelmente, olho para o indivíduo do outro lado da sala de aula. Ele fica simplesmente lindo de uniforme. Camisa branca, os últimos botões abertos, a gravata vermelha frouxa em volta do pescoço e meio pendente para um lado. A calça, que deveria ser certinha, também está um pouco desleixada. O cabelo voltou ao pseudo-moicano de sempre, os olhos voltaram a ter aquele ar inocente de todos os dias. Parece óbvio que seus pensamentos estão voando longe. Espero que não estejam em um lugar mais longe do que o lado oposto desta sala. Ou seja, mais especificamente, onde eu estou.

Depois de tantos anos sem saber o que é sexo oposto, depois de tanto me acusarem de lésbica e coisas afins, estou apaixonada por um cara. Não consigo esconder o quanto isso me parece estranho.

Um cara. Estou apaixonada por um cara.

Bom, ainda bem que é um cara.

Nada contra quem não acha, sem crise.

A questão é: não estou acostumada com a situação. Tudo isso ainda é estranho, meio surreal. Eu, apaixonada, sonhando coisas babacas e totalmente sem noção como véus, grinaldas e uma linda casa afastada da cidade com um jardim estupendo, onde criaríamos nossos três filhos, um gato amarelo chamado Fromage e cães alegres e saltitantes chamados Petit e Gateau (o porquê de meus animais terem apenas nomes de alimentos é um mistério). Sim, eu cheguei ao ponto imaginário ridículo de nomear os animaizinhos que teremos. Tudo isso sendo que, até antes de Luan surgir, a única pessoa conhecida que tinha o trabalho de perder tempo fantasiando coisas assim era Nara. E eu ainda me dava ao luxo de rir da cara dela.

Pobre de mim, mera idiota apaixonada.

— Do que está rindo, Lune? – Nara vira e me pergunta, com uma expressão de “você é usou drogas?” estampada no rosto. Só aí percebo que eu não estava rindo em silêncio, como imaginava que estava.

É, é tudo tão irônico e eu sou tão burra que nem consigo rir de mim mesma sem tornar isso público. Grande, Lune, grande.

Nara ainda está infeliz com a minha pessoa e me sinto envergonhada demais para explicar o porquê do meu riso. Com esse humor todo, é capaz dela concordar caso eu dissesse que estava rindo por que me achava uma anta histórica.

— Nada não, uma coisa que vi na TV – disse, coçando o nariz.

Resposta infinitamente mais segura. Ponto pra mim.

Ela deu de ombros e continuou lendo o romance. Um grave problema: quando Nara não presta atenção na aula, é porque algo alarmante está acontecendo, algo do tipo: ela não está bem. Dane-se, Luan acaba de morrer no joguinho em que está brincando e ele fica fantástico quando está puto com seu Game Boy.

— Lune – Nara me chama e interrompe minha observação fanática.

— Hum? – respondo, sem dar importância.

— Acho que aquelas ali estão armando alguma coisa.

Essa informação nova consegue me distrair minimamente.

— “Aquelas ali”, quem? – respondo, ainda sem olhar.

Aquelas – ela indica com a cabeça Chantal e Nicole, franzindo a testa e finalmente conquistando minha inteira atenção.

A dupla está cochichando alguma coisa, lançando olhares sugestivos para Luan e Chantal parece meio frenética. Depois de algumas trocas de frases suspeitas, a ruiva obviamente falsa pára os olhos em mim e os desvia, pois descobre meus faróis amarelos acompanhando cada movimento seu.

Sem dúvida, estão tramando alguma coisa.

O que acha que pode ser? – sussurro para Nara, me sentindo num filme de 007.

Não faço a mínima idéia, mas seja o que for, a coisa é contigo e com seu Don Juan – ela me responde, voltando a ler o livro.

Ele não é “meu Don Juan” – respondo automaticamente.

Minta para a sua avó – Nara me responde, com uma careta, sem nem erguer os olhos do livro e eu me sinto tão interessante quanto uma mosca batendo num vidro.

O.k., talvez seja mentira mesmo – demonstro minha forma mais humilde.

Ela revira os olhos.

Que seja, a coisa é que, se eu fosse você, ficaria em alerta. Por mais difícil que isso seja, no seu caso – ela retruca, ainda sem se dar o trabalho de parar a leitura.

— Não gostei da cutucada, mas, afirmativo, me manterei a postos e em alerta, câmbio.
Ela apenas me olhou como se eu fosse psicologicamente afetada, balançou a cabeça e voltou às páginas. Gostaria de saber que bicho a mordeu.

Ao término da aula, Chantal é a primeira a se levantar. Ela vai até a porta e chama por sua amiga que, por sua vez, faz um sinal nada educado com o dedo do meio.

Hoho! Por essa ninguém esperava! Quase ri. Quer dizer, antes de Nara e eu nos encaramos sombriamente.

Espero minha amiga bonitinha terminar de arrumar seu material, como sempre, e saio tranquilamente da nossa classe, admirando os raios do Sol sobre a grama logo à frente. Não que o clima bizarro entre mim, Chantal, Nicole e Luan não fosse interessante, mas eu não estava muito disposta a estragar meu dia com qualquer bobagem da parte delas. O que elas poderiam fazer, colocar cola em minha bolsa e grudar chiclete em meu cabelo? Faça-me o favor. Seja lá o que for, o dia está bonito demais para que eu consiga me incomodar. Afinal, há algumas horas atrás, eu, eu, e não elas, tive Luan passando os dedos pela minha cintura. Cada vez que a lembrança de suas mãos tocando meu corpo volta, eu encho meu peito de euforia.

Foi por isso que, quando saí pela porta, demorei alguns segundos até perceber um cenário nada comum.

E eu estava muito feliz até esse momento.

Esse é um dos problemas da vida ter preparado coisas interessantes para você. Nem sempre “interessante” é sinônimo de “fantástico”.

Logo depois de pôr os pés fora da sala, me deparo com a paisagem linda de Chantal prensando Luan contra a parede, usando muito as coxas, fazendo um nó em sua gravata. Tudo bem, nada demais. O problema foi quando, assim que me viu, ela passou uma de suas mãos pelo pescoço de Luan e o puxou com força em direção… a sua própria boca.

Acho que ele não soube o que fazer por culpa da surpresa. Por uns bons segundos, a única coisa que Luan conseguiu foi ficar ali, recebendo um beijo. Permaneceu imóvel, de olhos abertos e sobrancelhas levantadas, enquanto sua boca era assediada por uma outra que agia de forma muito determinada.

Enquanto a mim, também levei alguns segundos para demonstrar qualquer reação. Fiquei paralisada, olhando, enquanto a voz pequenininha da minha razão me dizia que aquilo não era nada demais, só um beijo roubado que acabaria assim que Luan se desse conta do que estava acontecendo e recobrasse a lucidez. Porém, foi impossível evitar. Começou como uma pontada pequena, a pontada afiada que é o choque. Depois, aquilo que era apenas um incômodo pequeno no fundo do estômago, ou da minha mente, ou dos dois, foi crescendo… e, num piscar de olhos, a dor se avolumava e tomava conta de tudo. Minha respiração ficou ofegante, o peito subia e descia com força enquanto eu procurava um meio de trazer ar para meus pulmões da melhor forma possível. Logo percebi que as “pontadas” que eu sentia em meu corpo eram só a pulsação do meu coração.

De repente, tudo mudou. Minha visão mudou. A temperatura do meu corpo. Os sentimentos. E, ao mesmo tempo em que eu assistia aquela cena, minha atenção se dividia para o que estava se transformando aqui dentro. Perdi o controle quando, involuntariamente, eu me retorci, cruzando os braços ao redor da cintura, agarrando com força minha pele a ponto de senti-la se rompendo com a força das minhas unhas. Meu instinto acreditou que assim o desconforto diminuiria. Não funcionou e meus olhos se umedeceram.

Mas por quê? Não deveria ter dor nenhuma, não tinha que existir desconforto nenhum. Era apenas um beijo. Um beijo sem sentido, um beijo que não tinha importância.

Então, por quê?

Tudo foi muito rápido, mas para mim, cada milésimo de segundo eram minutos. Minha primeira vontade foi disparar na direção de Chantal para arrancá-la dali, nem que, para isso, fosse necessário arrancar sua pele. Porém, não pude, pois uma voz pequena em minha cabeça ordenou que não me aproximasse. No fundo, bem no fundo, eu entendia o porquê. Eu cometeria um erro gravíssimo se tocasse nela. Com certeza, um erro muito grande.

No entanto, era difícil conter os impulsos irracionais do meu corpo.

Eu conhecia essa sensação, eu já a tive muitos anos atrás, apesar de não poder me recordar quando. Agora, eu me recordo do descontrole, da queimação, da dor. A qualquer momento a água de meus olhos poderia cair.

Mas não caía.

Notei, num instante de maior consciência, que havia um desconforto crescendo em minha garganta, como uma espécie de ânsia. Achei que vomitaria, portanto, mantive minha boca firmemente travada. Era como se algo estivesse simplesmente entalado ali, atrapalhando a respiração.

Nada fazia sentido. Não faz sentido. Não tem por que doer assim.

“Tem”, a voz em minha cabeça insistia.

Não, não tem. Não tem.

Chantal prensou ainda mais seu corpo contra o de Luan.

Meus lábios começaram a se mover sem meu controle. Eu queria dizer aquilo, mas não pensei em fazê-lo. Na verdade, ainda quis, de qualquer forma, não abrir a boca, mas não consegui. Quando notei, uma melodia estranha se misturava à voz que eu tentava conter, provocando um som nada bonito.

Fique longe dele – o chiado saiu por meus lábios com tanta intensidade que a penugem do meu braço se ergueu. Sentia a raiva pulsar em meus olhos e, no momento seguinte, uma sensação muito estranha percorreu meu corpo. Parecia outra onda de arrepio, mas era como se meu sangue estivesse se transformando e expandindo para fora da pele, num fluxo estranho. Mas nada havia à minha volta senão o ar.

Depois disso, um vento furioso atravessou o pátio.

A violência do ar foi grande ao ponto de fazer Chantal perder o equilíbrio. A rajada atingiu com violência a lateral do seu corpo, forçando-a a tirar as mãos de Luan e agarrar-se à janela mais próxima. Foi aí que encontrei o olhar de Luan e minhas emoções mudaram. A raiva foi substituída pela velha dor. Minha visão ficou mais nítida e eu parei de tremer, saindo levemente do estado de transe.

“Saia daí”, a voz soou autoritária, não admitindo desobediências.

Sem questionar ou relutar, movi meus pés em passos tímidos, enquanto relutava em desviar os olhos de Luan. Eu tinha uma pequena noção do vento movendo os cabelos de Chantal em direção ao seu rosto, chicoteando-o por todas as direções, enquanto ela não sabia se protegia os olhos ou segurava a saia, insistindo em se erguer. Uma personalidade em mim se deliciou com isso, porém, eu consegui afastá-la.

“Corra”, a voz ordenou mais uma vez.

A última coisa que vi antes de disparar foi a expressão estranhamente amedrontada de Luan em minha direção.

Depois disso, corri o máximo que pude.