quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Capítulo 17 ~ Elfa?

Novamente, me sinto em posição desfavorecida. O time adversário está em bem melhor posição do que eu e não há ninguém para marcar o impedimento. Só posso esperar que minha fada madrinha surja para me salvar.

Ele está ali, em pé, observando meus pequenos monstrinhos se projetarem para fora da cabeça. Só faltam bater asas e alçar vôo. Me jogo para dentro do quarto – única defesa a pensar no momento – e parto para uma busca desesperada.

— Ei, o que foi? – Luan entra atrás de mim e sinto em sua voz algum tom de deboche.

Sacana sem alma.

Encontro sobre a pia do banheiro o objeto estimado. Meu aparelho especial, projetado por mim mesma, há alguns anos. Devo à ele minha vida. É precário, mas eficiente.

Bem, o quê você faria se sentisse uma vergonha terrível de alguma parte do seu corpo? Uma operação? Assumiria com orgulho? Viraria emo e tentaria – apenas tentaria – se matar? Não sei você, mas eu me virei com o que deu. Arranquei a alça – de silicone – de um sutiã (um dos primeiros que ganhei na vida) e adaptei uns grampos nas pontas, como esses de segurar papel. Depois, foi só prender nas orelhas e voilà.

E ainda é ajustável! Claro, tive que colar borrachinhas nos grampos, para não machucar. Não sou masoquista, também.

Agora meio que me arrependo de ter conseguido pentear o cabelo decentemente, sabe como é, pelo menos os nós davam uma certa sustentação e as orelhas não apareciam, graças ao volume desorganizado. Mas, com ele liso e penteado, elas simplesmente pularam.

Na minha conversinha com Nara há algumas horas, ela pretendia falar sobre alguma coisa que também não é normal em minha pessoa. Luan acabou de descobrir. Nara já disse várias coisas sobre elas, minhas orelhas. Antes ela me perguntava se eu não havia pulado de dentro de algum livro de Tolkien, mas isso pelo menos ela dizia brincando, não igual ao negócio de ser bruxa (tudo bem, ela quer se jogar de um prédio toda vez que fala, mas, ainda assim, acredita). Sabem, ela se empolgou bastante quando O Senhor dos Anéis virou filme, gritava à todos os ventos que eu era idêntica aos tais elfos da Terra-média. Se é que existiam outros em outro lugar.

Ah, sei lá.

Mas, ao menos no filme, as orelhas deles eram bonitinhas, pontudinhas para cima. A minha é uma bacia disforme, pontuda e projetada para frente, nada comparado à elegância das orelhinhas da Galadriel.

Por falar nisso, eu não reclamaria nada em ficar com o Legolas, por exemplo. Bem que ele poderia ter saído em busca de aventuras comigo, ao invés de um anãozinho barbudo que não tomava banho.

Oh, eu o faria feliz.

Viro para Luan e dou de cara com seu rosto iluminado pela luz da sacada. Ele ainda estava dando um meio sorriso, totalmente zombador.

— Que foi? – mando num tiro e ele sorri completamente. Lindo, claro, como sempre. Aquele sorriso típico de galanteadores que te fazem desabrochar. Caloroso e sincero. E as covinhas.

Deus, as covinhas.

Acho que vou correr até ali na sacada, quem sabe tenho a sorte de não conseguir frear.

— Você – ele diz apoiando-se ao lado da porta, rindo abertamente da minha cara, sem nem se importar com o que eu achava disso. Sem falar que parece absolutamente confortável, como se não fosse sua primeira visita aqui e sim a casa de uma velha amiga – é engraçada.

— Está me chamando indiretamente de palhaça ou isso é um disfarce para não admitir que está rindo das minhas – pausa momentânea para engolir em seco e sinalizar sem jeito para a lateral da minha cabeça – orelhas.

As sobrancelhas dele levantam, assim, de uma forma linda e, com um dos cantos da boca mais alto do que o outro, Luan ergue o indicador e dedo médio, deixando claro que ambas as opções estão certas.

— Ah, que bom! – berro, mais irônica que nunca.

Ele solta outra gargalhada gostosa, jogando a cabeça para trás e congelo de admiração. Odeio ficar nervosa, nunca consigo agir com calma, classe, tolerância e tudo aquilo que as pessoas elegantes dizem para você fazer nos momentos desconfortáveis.

— Eu estou só brincando, Lune, claro que não é nada disso. Suas orelhas são só um pouco… diferentes – ele conclui, rindo bastante da cara com a qual o olho.

— Você riria se visse alguém com… com… problemas dermatológicos ou algo assim? – pergunto irritada.

Tudo bem, eu sei que não foi o melhor exemplo do mundo. Eu sei.

— Fala sério, você não tem senso de humor – ele responde, com uma careta.

— E você não tem… não tem… alma – estou perdendo a noção, não sei mais como posso me salvar da demência que com certeza vai contaminar meu cérebro se eu continuar convivendo com esse cidadão.

Derrotada, me jogo na cadeira da penteadeira. Percebo Luan me assistir com curiosidade, analisando cada centímetro do meu rosto transtornado, mas não crio coragem para cravar meus olhos amarelos nos dele. Então, sem mais nem menos, vejo ele se mover com calma.

Como sempre, cada mínima reação dele faz meu peito arfar e eu preciso me controlar muito para não deixar meu nervosismo transparecer. Principalmente quando, ainda sorrindo, Luan se aproxima e fica de joelhos na minha frente.

Cerro os punhos para dominar os dedos trêmulos quando nos encaramos por alguns segundos. O castanho dos seus olhos parece mais caloroso assim, de perto, como chocolate derretido.

— Você…

E, como em todos os momentos emocionantes prestes a acontecer na minha vida, alguém decide ser uma boa hora para atrapalhar. Meu pai vem subindo as escadas, chamando por meu nome.

Ô, merda.

Levanta e corre – o interrompo muito a contragosto num sussurro desesperado e salto da cadeira. Saímos do quarto correndo e paramos na sala de TV a tempo de assistir suas cabeças aparecerem nas escadas. Enfio um sorriso amarelo no rosto e pergunto, alegre, com a maior cara-de-pau da Bélgica:

— Chamou, papai?

Ouço Luan abafar uma risada atrás de mim e tento acertá-lo disfarçadamente com a escova de cabelos.

Graças aos céus, conseguimos disfarçar bem a cara de culpa, pois aquela minha dúvida sobre o quê papai pensaria ao ver um garoto no meu quarto foi praticamente respondida.

— Onde a senhorita estava? – disse, tentando camuflar a irritação com um tom de voz casual e um sorriso forçado. Porém, eu sei que, quando Otto diz "senhorita", não está pulando de felicidade comigo. Luan respira calmamente ao meu lado e no momento em que decido abrir a boca, ele parece perceber meu fracasso persuasivo eminente e se adianta, dizendo:

— Tem uma linda casa, Sr. Gautière.

Perfeito, pois a única coisa que eu estava planejando dizer era “Ah… onde eu estava? Ah…”.

Ou seja, seria nosso fim.

Apenas com essas palavras, a expressão do velho Sr. Gautière se amansa. É lógico, eu estava mostrando a casa para Luan. Absolutamente lógico, ele é um grande amigo da escola. Meu pai criou uma filha muito educada.

— Ah, obrigada Luan, pode me chamar de Otto – papai responde e percebo Victoire me fitando. Sinto alguma coisa estranha no olhar dela. Mesmo, mesmo.

Essa mulher é muito esperta.

Assim que papai as convida para o seguirem, pois ele iria realmente mostrar a casa para alguém, Lise passa por nós com um olhar simplesmente congelante. Me senti como se tivesse acabado de sair de um frigorífico. Luan parece perceber e quando sua irmãzinha desvia o olhar, ele desce o rosto até mim para sussurrar algo perto do meu ouvido, arrepiando todos os pêlos da minha nuca.

Lógico, ele não sabe disso.

Talvez a pequena Lise tenha percebido algo – tento manter minha expressão indiferente, para não demonstrar que a sensação dos meus cabelos balançando enquanto ele fala próximo às minhas bochechas faz meu coração quase criar vida própria e sair correndo.

E agora, será que posso conhecer a casa ou já conheci o único cômodo importante? – ele diz, afastando-se e sorrindo gentilmente.

Meio apavorante, se querem saber.

Ele é apavorante. Eu estou afirmando, acredite. Aquele tipo de pavor que deixa suas pernas fincadas no chão e faz seus batimentos cardíacos terem uma média de uns mil por segundo. E o pior é, de alguma forma, você apreciar isso.

E “você”, nesse caso, significa “eu”.

Depois de um tour por toda a casa, um bate-papo legal (pelo menos para a maioria) na sala de estar e muitas beliscadas de aperitivos, o momento de encher a barriga com comida de verdade chegou. A aflitiva hora do jantar. Aflitiva? É, não deveria ser, afinal, nós três – eu, Luan e Lise – já esperávamos por aquilo. Aquela declaração mágica. Já esperávamos porque, no fundo, conhecemos as índoles subitâneas – ou seja, totalmente sem noção – dos nossos pais. Porém, já que eles – nossos pais – não tiveram a consideração de amaciar a idéia do matrimônio antes de socá-la em nossa goela, fingimos não esperar. Sabe como é, demonstrar surpresa. Então, todos nos postamos em volta da mesa, sobre nossos respectivos lugares, com os ares alegres e confortáveis de pessoas encontrando velhos amigos ou parentes para uma ceia de Natal.

Mas sabem, mesmo com a leve atuação, tenho de admitir que essa coisa toda acabou se tornando divertida, em certa altura. São boas pessoas, muito agradáveis e simples, bem humoradas (é, é, vocês sabem, menos uma). Victoire se empolgou contando suas histórias hilárias, meu pai/eu rimos sem parar e Luan sempre tinha comentários sarcásticos a acrescentar – e, também, olhares misteriosos pra jogar em qualquer demonstração minha de ter achado graça.

Ah, olha só, as vezes eu ria sem nem saber por que estava rindo. E eu achava que essas coisas só aconteciam em filmes e com pré-adolescentes.

(…).

Ah, sim, o fato é que eu realmente gostei deles.

Mas tudo isso durou apenas até todos limparem a comida do prato. Pois, depois disso, o lugar destinado à sobremesa – minha torta de chocolate maravilhosa – foi tomado por um ar terrivelmente sério e, bem, angustiante.

Qualquer um tem noção do quanto é estranho eles declararem a coisa toda assim, no primeiro encontro de famílias, sem ao menos enviar uma única circular para os demais indivíduos envolvidos. Todavia, tentarei considerar a ansiedade e relevar. Meu pai nunca foi casado. A existência de uma pretendente em algum tempo remoto (que com certeza não foi minha mãe) é algo totalmente possível, mas, até o ponto que me cabe, nunca houve. E, também, analisando a forma como estava nesses últimos meses, sou forçada a botar fé no interesse do cara.

Putz, vocês devem imaginar, esse tipo de coisa complica o nosso trabalho de filhos. Custava mesmo avisar algumas semanas antes?

O.k., posto todas essas coisas, sinto-me tranqüila para conseguir levar em conta e perdoar tamanha falta de tato. Eles quiseram dar a notícia de uma forma bonita, juntos. E eles estão tão apaixonados. Não agüentam mais esperar.

Romântico, não é?

É.

E mesmo sendo estranho, quem disse minha vida é do tipo convencional?

— Bem, eu gostaria de – pondo-se em pé e segurando uma taça de vinho, meu pai inicia gentilmente seu discurso – quer dizer, nós gostaríamos de contar para vocês…

(Silêncio).

Ah, droga, é mais difícil do que eu pensava – ele tenta cochichar para Victoire, que o olha impaciente, mas eu consigo ouvir perfeitamente mesmo do outro lado da mesa – bem, nós queríamos contar… eu e Vic, nós – pigarro – nós…

— Nós estamos namorando – ela cospe de uma vez tudo isso na minha cara com uma expressão agradável. Em seguida, olha com irritação para meu pai que, definitivamente, é um bunda mole.

(Silêncio).

Ah, ótimo, para mim está o.k. Podem namorar o quanto quiserem, vocês são adultos, podem se ver de vez em quando noturnamente e também finais de semana, quem sabe até compareço a alguns programinhas de família. Muito, muito bom mesmo.

— Na verdade, estamos noivos.

Isso sim não foi muito sutil. Logo de cara, . Agora engulam isso com Coca-Cola.

E foi tão pouco sutil – e lindo ao mesmo tempo – que a própria Victoire arregalou os olhos para ele. Sim, porque foi meu pai – meu pai, em quem um dia depositei minha confiança – que mandou essa. Aparentemente, ela não sabia.

Bom, o quê eu deveria fazer? Aplaudir? Soltar uma exclamação?

Puta merda.

Graças à um mandato de misericórdia divina, para variar, foi Luan quem agiu primeiro. Logo depois que sua mãe – com os olhos brilhando de verdade – aceitou o anel reluzente oferecido por meu pai, ele se levantou num pulo e a abraçou com tanto entusiasmo que chegou a tirá-la do chão. E eu morri de inveja.

Ah, isso está rápido demais pro meu gosto. Eu preciso de tempo pra digerir, caramba, uma coisa de cada vez, uma coisa de cada vez!

Então, me manco de que estou com cara de parede descascando e preciso mexer minha bundinha.

— Até que enfim vamos desencalhar, dona Vic! – diz o futuro meio-irmão mais gostoso do, sei lá, universo.

— Parabéns papai – digo timidamente, quando criei coragem para sair da cadeira e lhe dar um abraço. Vagamente, escuto ele comentar algo sobre medo da nossa aceitação e felicidade por ter dado tudo certo. Ainda sem raciocinar, lhe respondo que o medo era pura bobagem e vou apoiá-lo em qualquer situação.

Concordando ou não.

É, eu quero que ele seja feliz e, se isso o faz feliz, por que eu deveria implicar? Mesmo não estando acostumada em vê-lo com outra mulher, dividindo o tempo livre, essas coisas, mas Victoire é uma moça legal, bonita, parece divertida e é uma boa pessoa, mesmo conseguindo ter ainda menos prudência que meu pai.

Além disso, vai trazer de bagagem um filho que, bom… é.

Meu Deus. Choque.

Acho que preciso me sentar.

Eu não tinha realmente me tocado sobre isso antes.

Quer dizer, ele já tinha me dito, claro, mas o meu cabelo e minhas orelhas são tão importantes que não prestei atenção. O quê ele disse mesmo?

Que seríamos irmãos?

Claro, até eu já disse, mas entre dizer e realmente pensar no assunto há um hiato muito grande.

Caramba, Luan vai ser meu meio-irmão. Ou seja, se papai chegar a se casar com essa mulher (que é uma moça bem legal e simpática, repito) isso quer dizer que vamos… morar juntos? Do tipo, acordar juntos, ir para a escola, jantar, sair, ir ao cinema em família, passar Páscoa, Natal, Réveillon, Corpus Christi?

Bom, pode ser divertido não pode? São pessoas de companhia agradável e Luan consegue ser agradável mesmo sem dizer nada. Só olhando você se sente a pessoa mais alegre do mundo.

É, é uma criatura com boas energias. Ótimas energias. Maravilhosas energias.

Só isso, ele é zen.

Claro que nossa querida Lise (que está agora sentadinha, aplaudindo e até sorrindo encantadinha com o… "beijo" que meumeu, meu – pai deu na mãe deles) não precisava exatamente vir junto no contrato. Ela não tem cara de quem gosta muito de mim, imagine, não tenho paciência nem para me suportar, ainda mais ser obrigada a suportar uma pré-adolescente na puberdade trazendo amiguinhas para uma festa do pijama, na qual vão tomar sorvete direto do pote, comer chocolate, falar mal das "otárias" da sala e espiar o irmão gato sem camisa no quarto.

Meu Deus, será que ele fica sem camisa no quarto?

— Agora, nós propomos um brinde à nossa união – Victoire diz com um sorriso bem extenso. Dá para ver que está saltando de felicidade. E a visão de um certo cara sem uma certa camisa até me entusiasmou bastante.

Ei, eu não sou de ferro, sabe? Principalmente com ele me olhando assim, com esse sorriso mais puxadinho para um lado, as covinhas, os olhos cor de chocolate iluminados pelo lustre, todo aquele clima romântico, coisa e tal.

Ai, Jesus! Eu tenho que parar de falar dele.

Todos levantam as taças e fazem o tal "tim-tim", se me permitem uma onomatopéia. Depois da sobremesa, Victoire levanta e começa a tirar nossos pratos com restos de torta.

Imediatamente eu e meu pai saltamos, eu para ajudar a tirar a mesa e meu pai para fazê-la parar – Victoire, não a mesa, que já estava parada e sem intenções de se mover. Para mim, foi uma alegria vê-lo não conseguir. Lógico, é o meu dia de lavar a louça, mesmo tendo ficado em dúvida se ainda faria isso hoje, pois o Sr. Gautière anda querendo tanto se mostrar um homem caseiro, cozinhando e tudo (eu descobri que poderia ter sacado que teríamos visitas, era só olhar na geladeira e dar de cara com as duas lasanhas imensas logo na primeira prateleira). Mas essa “Vic” é de matar. Ela virou para ele e disse, com um sorriso divertido no rosto:

— Pode deixar, Otto. Um dia, se você não fizer nenhuma cagada, seremos uma família, acabarei nisto de qualquer forma.

Bom, até aí tudo bem. Mas, infelizmente, ela decide complementar pouco antes de sair da sala:

— E, também, será ótimo eu e Lune nos conhecermos melhor.

Merda.

Eu ainda mantenho um fio de esperança preso em meu pai, mas Luan consegue fazer o favor de arrebentá-lo.

— Otto, está passando um amistoso da seleção hoje, gosta de futebol? Acho que ainda dá pra assistir o segundo tempo.

E não restou mais nenhum tipo de relutância. Homem de opinião fraca. Malditos pratos, maldito futebol.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Capítulo 15 ~ Bicho do Mato

Como é bom se sentir livre um pouco não é? Pena que eu só consigo me sentir assim ao fim do dia, na minha varanda. Por quê? Sei lá. Acho que por ser um lugar alto e conseguir sentir o vento de um jeito bem bacana. É gostoso me debruçar sobre a grade da sacada, olhar para a rua ao lado, sentir a brisa morna do pôr-do-sol no rosto… sem comentar que só o fato de já ser sexta-feira me anima em muito.

Sempre gosto de vir aqui depois do meu banho, olhar a paisagem enquanto penteio o cabelo… uma cena bem romântica.

Quer dizer, nem tanto hoje.

Meu cabelo é enorme, sabe? Louro-platinado, fino, liso e dá um trabalho do caramba desembaraçar. Ele chega juntinho ao fim das costas, isso mesmo, quase na bunda. E considere que não sou tão baixa.

Agora, imagine: ele está molhado e seu condicionador estava no fim, portanto, você não pode usar o suficiente para todo o comprimento, tendo que aplicar o último suspiro do bendito apenas nas pontinhas. Logicamente, depois dessas constatações, você pensa em investir no seu bom creme para pentear, aquele que tem cheirinho de orquídea, mas descobre que também acabou e seu papai querido não fez compras, logo, a lista que continha seus produtos de sobrevivência, a lista que você preparou com todo o cuidado, não foi nem tocada.

E você está aí, na sua sacada linda, envolta de rosas cor-de-rosa pequenininhas, perfumadas, porém, não. Consegue. Pentear. O. Cabelo. De. Jeito. Nenhum.

— Ah, que droga! – berro, quando a porcaria da escova fica presa num nó realmente grande e faz ir pro espaço meu último resquício de paciência.

Me apoio derrotada sobre a sacada – com a escova ainda suspensa nos fios da minha nuca – bufando e olhando para o horizonte. O Sol já está quase indo por completo e o céu está todo num tom bonito de amarelo.

De longe avisto meu pai vindo de carro e já me animo. Eu gosto muito de ficar sozinha, mas a companhia dele me agrada, assim, no final do dia. Normalmente, nós comemos porcarias juntos, enquanto nos divertimos contando como foi o dia um do outro. É incrível, ele é muito divertido, de verdade. Consegue deixar a história de um simples dia chato de trabalho interessante, principalmente quando desata a falar mal da mulher que trabalha bem perto dele e fica mandando olhadelas suspeitas em sua direção. Ao que parece, ela é feia de doer, tem nove graus de miopia, é magra feito um pau e só usa roupa estampada com temas da selva. Eu quase me rasgo de rir quando ele fala dela.

Desço as escadas correndo para recebê-lo e reclamar pelas compras não feitas, mas, antes mesmo de chegar aos últimos degraus, derrapo com uma freada brusca e caio de bunda.

… A porta da frente, cheia de vidros coloridos foscos…

… Sombras de pessoas…

Isso não é bom.

AimeuDeusaimeuDeusaimeu

Tento correr de volta lá para cima, mas, como o destino me preparou surpresas interessantes, não dá tempo nem de me pôr em pé direito. Derrapo mais uma vez no tapete da escada e me agarro no corrimão exatamente na hora em que a porta abre.

Nada a se surpreender. Meu pai entra carregado de algumas sacolas. Como da outra vez, deve estar tentado se mostrar o pai prestativo e preocupado. Mesmo com essa mania doentia de trazer visitas sem avisar.

Bom, a cagada já está feita mesmo, certo? Por que me incomodar?

Certo.

Pelo menos foi o que pensei, tranquilamente, até Luan entrar pela porta.

Oh, não.

CagadacagadacagadaCAGADA!
Olhei desesperada para baixo e sinto dizer: minhas vestimentas, nas quais depositava toda expectativa restante, estavam piores do que o cabelo.

Maldito macacão, maldita coisa rosa com estampa da Barbie (velhas recordações de uma camiseta), maldito All Star rasgado e sola descolando.

Um uniforme imundo é melhor do que fantasia de fazendeira pop. Só faltaram o balde e a vaca.

Não tem jeito. Eu sou uma caipirona mesmo. Não, pior que isso. Eu ficaria feliz em ser caipira, se eu realmente fosse uma. Mas, não. Eu pareço uma e das mais falhas.

Papai pára no hall, enquanto as outras três pessoas se enfileiram ao seu lado. Oh, não, nem isso ele pode fazer por mim, ficar na porta para que outros não vejam meu estado miserável. Imediatamente disfarço a posição ingrata e finjo estar apenas arrumando a sola do tênis, mesmo que o tapete torto, amassado e desalinhado denuncie minha queda ridícula.

Olho para o rosto dos visitantes inoportunos. A moça, a mesma que me viu no outro dia vestida de abominável monstro de lama está… bem, parecendo achar graça. Luan está sorrindo divertidíssimo com a situação. E… a garotinha estúpida me olha com cara de desprezo.

Timidamente, e com certa (muita) dificuldade, desprendo a escova da minha nuca.

Anh… oi – digo, levantando a mão num gesto cômico. Meu pai foi o primeiro a falar.

— Lune… você teve uma briga com o ventilador ou algo assim? – todos acham graça da sua piadinha sem graça, mas ninguém ri, tirando Luan, que parece querer abafar uma risada.

Ah claro, se dobrem e riam da otária com cabelo-moita.

— Não – começo a responder sem graça – meu creme acabou.

— Luninha, amor, eu não disse que íamos ter visitas? Por que não se arrumou antes?

— Ah… disse? – retiro o que falei sobre a mania doentia.

— Disse.

— Ah, bem, você saberia se eu tivesse me lembrado.

Ele me olha e por fim solta uma risada gostosa. A moça também ri e Luan tem um ar estranho nos olhos. A menina continua com o olhar de desprezo.

— Bom… aqui está Victoire, que você já conhece, e seus filhos. Luan você já conheceu também, não filha? Vic me disse que estudam juntos e eu te perguntei ontem… e esta é Lise, a caçula – ela direciona um olhar de ódio para o meu pai. Talvez não goste do status de irmã mais nova.

— Bom, vou levar as compras pra cozinha. Faça companhia pro Luan, filha.

E saiu, seguido por Victoire – que oferecia ajuda – e Lise, simplesmente porque não tinha o que fazer.

Luan fica parado onde está. Me observando. E eu ali, analisando meu tênis, tento não me lembrar de que estou na presença dele. Tipo, imaginando outra coisa no lugar. Pena que nossa imaginação não é a mesma de quando tínhamos cinco anos de idade.

Finalmente crio coragem para encarar o problema. O cara parece estar achando tudo muito cômico… merda, ele não consegue deixar de ficar lindo por um único maldito segundo? Isso seria minha sanidade.

Eu não acredito que acabei de pensar nisso.

Levanto dos degraus da escada.

— Ah, bem, se não se importa eu vou lá para cima e…

— Acho que nossos pais vão se casar.

Engasgo com a minha própria saliva e ele corre para me ajudar.

— O-o que você – pausa para tosse – disse?

— Ah, desculpe ser tão direto assim – ele sorri abertamente, dando tapinhas nas minhas costas – mas eu creio que é isso que vai acontecer.

Arregalo os olhões para ele, que dá mais uma gargalhada.

Como assim. Meu pai? Se casar? Que tipo de maluquice é essa?

Merda.

Mas… eles podem se ajuntar, por que não? Quer dizer, não precisam exatamente casar.

Ah, meu Deus, qual a diferença?

Espera, estou me desesperando à toa. É, é isso. O cara acabou de falar um absurdo, ele nem deve ter motivos nenhum.

— Por que você diz isso, está querendo me assustar? – lanço a pergunta para Luan de uma forma agressiva e irracional. Ele ergue as sobrancelhas para mim, como se isso pudesse defendê-lo da minha ira. Ele parece estar tentando ler alguma coisa no meu rosto, mas eu não me importo. Esse indivíduo não pode chegar assim na minha casa e começar a mandar merdas assim na minha cara!

Então… por que ele não pára de me olhar como se a sua suposição fosse óbvia e não precisasse de explicações?

Não, não pode. Meu Deus, isso acabou de começar, não podem casar assim, de uma hora pra outra. Tem que namorar antes. Eu imaginei mesmo que meu pai estivesse se enrolando em alguém, a arrumação toda para ir trabalhar, os jantares que arranjava toda semana… estava sempre meio perdidão… os homens apaixonados sempre ficam meio sem saber para onde ir, sabe, babacas. Mas eu nem sabia de nada. Isso não deve estar acontecendo há muito tempo.

Na verdade, está sim. Para um cara que nunca vi se interessando por nenhuma mulher, nunca vi saindo com ninguém nem vi mencionar nada sobre isso… três meses pode ser bastante tempo. Pois essa palhaçada toda começou há uns três meses.

Aí, agora, meu pai vem trazer a moça de seus olhos para jantar aqui em casa, com os filhos dela – que, inclusive, um me causa formigamentos e a outra parece querer vomitar em mim.

Eu conheço meu pai. Ele não faria isso antes de ter certeza que gosta muito da pessoa.

De certa forma, é isso que me perturba mais.

Não, é demais para uma inocente garota como eu.

Despenco nos degraus da escada.

Luan me olha com interesse. E eu olho para o nada com interesse. Minha incredulidade devia estar estampada na minha testa, pois ele sustentava uma expressão penalizada e confusa.

— Tem ciúmes do seu pai? – o cara de covinhas perfeitas pergunta e eu não tenho uma resposta. Quer dizer, eu gosto tanto do meu pai que talvez tenha me acostumado com a presença dele só pra mim. Sabe, sem mais ninguém, assistindo filmes, conversando, comendo batatas-fritas, apreciando os maravilhosos chocolates belgas ou tomando sorvete… mas… outra mulher? Dividindo tudo isso? Nunca pensei em algo assim.

— Não, é só que… ah – tento falar, mas escuto as vozes animadas na cozinha. Levanto assustada. Eu não deveria estar aqui ainda. Não posso deixar que me vejam assim de novo, principalmente com a cara de idiota agora estampada. Me viro para Luan e não penso mais vezes antes de agarrar seu pulso e puxar escada acima. Na verdade, seria mais adequado dizer que não penso antes de agarrar seu pulso e puxar escada acima. Subi quase aos tropeços, lembrando na metade do caminho que deixei a escova lá em baixo e não peguei nada que pudesse me ajudar a pentear o cabelo. Voltei quase rolando para procurar qualquer coisa que pudesse salvar minha situação. A estas alturas, até óleo de cozinha serviria.

Por sorte, tinha o creme.

Mas deixei a escova lá. Ah, isso não importa.

Alcancei Luan e passei correndo, com ele ao meu calço.

Não sei o que papai acharia de um garoto no meu quarto, nunca cheguei perto de ter um lá, mas não me interessa, estou em estado de nervos. Meu pai, casar? Esquece.

Ao topo da escada, atravesso correndo a pequena sala com a TV e enfim chegamos à porta do meu quarto. Só depois de puxar Luan para dentro é que me lembro das toalhas molhadas espalhadas, mas não é hora pra isso. Ele passa os olhos pelo aposento, enquanto vago sem rumo.

— Ai meu Deus. É verdade – digo sem pensar.

— O que é verdade? – ele diz calmamente, com um ar feliz, parando em frente à penteadeira. Então, pega alguma coisa e joga. Seguro o objeto vindo na direção do meu nariz e pisco devagar. Estou atordoada o suficiente para não me dar conta de que peguei um objeto em pleno ar. Eu nunca tive coordenação o bastante para isso.

— Eles vão se casar – falo, mais para mim mesma do que para ele, observando a nova escova de cabelo em minhas mãos. Despejo um pouco de creme na palma e passo nos fios emaranhados, pensando no meu pai e sua futura esposa conversando amigavelmente sobre uma escova de cabelo esquecida na escada pelo penteado Papai Noel na primeira páscoa em família.

— É o que tudo indica. Seremos irmãos – ele diz. Eu surto com a idéia.

Estou me sentindo meio idiota. Ah, esquece. Levanto e vou para a porta da varanda pensativa, ainda escovando os cabelos. A brisa agora está gelada, mas mesmo assim não saio da frente dela. Ouço Luan se levantar e parar atrás de mim.

— Você não me respondeu. Sente ciúmes ou não?

— Não – digo convicta e quase posso sentir seu sorriso atrás de mim. Desisto – tá, eu só não me sinto confortável com outra mulher por perto… não tenho mãe, sabe… – vou perdendo a força na fala e ele abre o resto da porta de correr. Encostando-se com o ombro nela, também observa o céu escurecido.

— O que aconteceu com ela?

Eu, que estava distraída encarando a pouca luminosidade sobre a copa das árvores, não dou importância para o fato de mal conhecê-lo. Ali, naquele momento, seu calor perto de mim era confortável. E familiar. Como uma antiga recordação esquecida há muito, muito tempo.

— Sumiu.

Fez-se um período de silêncio até ele falar de novo.

— Sumiu, tipo, abandonou?

Eu, de um jeito meio fraco, só consigo sinalizar a resposta afirmativa balançando a cabeça. Como ela me incomoda, como aquela mulher me incomoda. Por que fez isso? Um dia eu vou te encontrar e você vai pagar

— Lune? – a voz de Luan soa grave perto dos meus ouvidos e eu pisco, confusa – tudo bem?

Eu olho para ele sem compreender e sem me lembrar de meus pensamentos.

— É, vivemos tanto tempo sozinhos que me acostumei com toda a atenção dele – concluo minha explicação, voltando a pentear os cabelos. Ele pareceu meio atordoado, sabe-se lá por que.

— Acho que eu entendo – diz, por fim, ainda me encarando com uma sobrancelha mais alta que a outra e eu, suspirando, falo para o tapete:

— Bom, mas quero que ele seja feliz.

— É isso que importa – meu futuro-meio irmão conclui e me lança um sorriso reconfortante. Foi meio inconsciente, mas eu sorri também. É engraçado como me sinto confortável perto dele. Quer dizer, eu o conheci faz menos de uma semana. É engraçado.

Uma brisa mais gelada ainda bate sobre meu rosto e eu estremeço um pouco. Luan, então, sai da sua posição confortável, me puxa para dentro pela parte de trás do meu macacão e fecha a porta.

Isso foi meio fofo, se quer mesmo saber.

— Espero você lá fora – e sai, olhando pela última vez meu cabelo ainda em formato de guarda-chuva.

Depois de conseguir desembaraçar tudo e colocar uma roupa cuidadosamente planejada – apenas um jeans, uma blusa de lã larga caída num dos ombros e um All Star menos despedaçado –caminho em direção à porta, sem nem olhar o espelho. Coisa de que me arrependi mais tarde. Não muito mais tarde, na verdade. Foi assim que botei o pé no corredor e dei de cara com o cidadão esperando educadamente ao lado da porta.

Ah droga, esqueci!

Bom eu não poderia adivinhar. Eu não preciso me olhar no espelho. Eu sou sempre a mesma coisa. Sempre a mesma cara, o mesmo cabelo e o mesmo tudo. Por que eu perderia tempo admirando minha imagem enquanto tem um cara fantástico me esperando logo ali?

Acho que, depois de hoje, vou começar a pensar mais sobre a utilização do tal objeto.

Luan assume uma expressão estranha no rosto e eu tremo da cabeça aos pés.

— Meu car… – palavra inapropriada – isso é sua orelha?