Várias pessoas costumam criticar Moulin Rouge. A maior parte delas justifica a aversão dizendo que é um filme viajado, louco e cheio de partes incompreensíveis ridículas, como aquela em que todos se unem numa música estranha para convencer o duque da maravilha do espetáculo espetacular. Já a menor parte dessas pessoas afirma achar o filme uma bosta porque simplesmente odeia musicais. Realmente, existem alguns musicais insuportáveis, até para mim. Aqueles em que o personagem se encontra nas situações mais deprimentes e, mesmo assim, tem ânimo para cantar numa voz feliz: e ago-ora, estou na me-erda e isso ééé uma grande porcari-i-a – estou dando um exemplo, logicamente.
Mas, não Moulin Rouge.
Há três anos, estava sentada calmamente neste mesmo sofá, viajando nos pensamentos. Me lembro bem da Lua, pois era para ela que eu olhava. Também me lembro de estar me sentindo um tanto sozinha, sentindo falta de alguém. Não que isso fosse uma novidade, naquela época eu constantemente sentia falta de alguém. Talvez eu estivesse pensando na minha mãe. Ou, melhor dizendo, estivesse pensando em uma mãe qualquer. Pelo menos, é o que suspeito – que o indivíduo misterioso fosse, no fim das contas, a figura materna que nunca tive.
Não importa.
O fato é que essa pessoa, seja quem fosse, me fazia falta. Uma falta imensa e, no momento
Então, Nara chega com uma caixa numa mão e um saco de batatas-fritas na outra.
“Moulin Rouge” ela diz “precisamos assistir. Agora”.
Confesso que, inicialmente, não me interessei muito. Pensei ser mais um daqueles filmes água-com-açucar românticos com que Nara costumava se encantar. Ainda mais por ser musical. Não que eu não goste deles, eu adoro música, principalmente as que envolvem minha própria voz. Mas a maioria – se não todos – os que eu havia assistido até ali, não eram grande coisa. Ou eram bons, mas não o suficiente para me tirar mais do que um “legal mesmo” ao final do filme.
Não preciso dizer o quanto foi diferente com Moulin Rouge. Isso nem é uma coisa fácil. Mas vou tentar mesmo assim: foi como se o filme tivesse substituído alguma parte que faltava e me levou para bem perto da pessoa que eu estava esperando há pouco tempo. Me fez acordar, me deu algo pelo que torcer, me deu um motivo para pensar no amor. E o principal e o mais chocante: me fez chorar.
Nós assistimos três vezes seguidas. Na primeira, eu entrei em choque, fiquei pasma, com os olhos cheios de lágrimas. Não queria acreditar. Na vez seguinte, fiquei muda do início ao fim, mal conseguindo ver as cenas. E, na terceira vez, chorei. Chorei mesmo, de escorrer lágrima e soluçar. Enquanto eu unia voz com Ewan McGregor ou Nicole Kidman, parecia sentir tudo o que seus personagens estavam sentindo. E chorei como nunca na minha vida.
Após esse dia, sempre que Nara fica sabendo que pretendo assistir o filme, ela faz o possível para estar junto. Porque diz que me ver cantando as músicas de Moulin Rouge é uma das melhores coisas que alguém pode ter o privilégio de presenciar.
Vai entender. Na verdade, a única coisa que eu faço é… cantar. E canto como se a história fosse comigo. Nunca me vi como uma pessoa com imaginação fértil, mas confesso que quando vejo Moulin Rouge, minha cabeça vira tanto que eu sinto a situação como se fosse comigo. E quase me convenço disso. O amor representado por eles é tão forte e triste que eu sinto em mim mesma, desejando nunca ter de passar pela mesma coisa.
E, ainda assim, sempre com a sensação de que vou.
Bom, enfim. Expliquei tudo isso só para tornar a minha situação atual um pouco menos chocante e eliminar a chance de alguém levar um susto sem tamanho. Porque, se alguém subir subitamente essa escada, com certeza vai berrar de medo.
A menos que o alguém em questão seja Lise, que se limitou a arregalar os olhos e fixá-los em mim, com sua natural expressão de mau-humor e um enorme ponto de interrogação pairando no ar.
Não sem motivo. As pessoas mais centradas, no caso, ela, conseguem manter o rosto impassível ao se deparar com uma garota descabelada encolhida num sofá coberto por fragmentos de batatas fritas, enquanto, com o rosto metido num edredom velho cheio de retalhos, canta em lágrimas o quanto o mundo é bonito agora que a pessoa amada está no mundo.
É.
Pensa só no meu desespero quando percebi sua excelentíssima presença me encarando. Eu já achava muito que Nara visse essa cena ridícula. Para minha sorte, ela estava com mais sobrecarga de irritação do que hoje à tarde e, por isso, nem se incomodou com a visão. Apenas balançou a cabeça e sentou bem no meio do sofá, entre Nara e eu, com sua impressionante cara de incômodo profundo. Inicialmente, pensei que o incômodo fosse eu, mas depois percebi que seus pensamentos estavam longe. A cada cinco segundos, ela franzia o cenho, bufava e olhava para o relógio na parede.
— Aconteceu alguma coisa, Lise? – perguntei de forma muito cautelosa, uns três minutos depois dela se sentar.
Não obtive resposta. Ela só balançou a cabeça e fez um sinal estranho com as mãos, como se dissesse que falaria depois. Dei-me por vencida e passei a comentar com Nara meu desesperado desejo por mais batatas fritas. Estava quase conseguindo convencê-la a sair para comprar quando o telefone tocou e, com muito custo e coragem, levantei para atender.
— Hã – disse, sem muito entusiasmo.
— Lune? – uma voz masculina soou do outro lado da linha, mas logo na primeira sílaba minha esperança se quebrou. Eu seria capaz de reconhecer a voz de Luan num pigarro e, absolutamente, uma sílaba foi o suficiente para eu ter certeza de que não era ele.
— E se for? – a falta de entusiasmo continuava.
— Oi, aqui é o Phillip. Sabe, o Phil.
— Ahã, oi, Phil.
Ele estava interrompendo meu filme e, além disso, minha petição por batatas. Ele merecia uma atenção congelada.
— Bom… eu liguei para saber como você está.
— Bem.
— Está precisando de alguma coisa? Por que posso…
— Não, não, eu estou legal. Tirando a miséria de batatas fritas estou tranqüila.
— Batatas fritas? Eu posso…
— Não, sério, tudo bem.
(Silêncio).
— Hã… – ele prosseguiu – sei que pode ser uma coisa meio chata de se perguntar, mas é que eu realmente estou preocupado com você. Bom, de qualquer forma, se você não quiser, eu vou entender… eu estava pensando, amanhã a gente podia dar uma volta, sabe, depois da aula mesmo, aproveitar o final da tarde.
O cara não espera nem o defunto esfriar.
Certo. Realmente, foi um absurdo ele tentar uma investida assim logo de cara. Sem contar todas as mancadas que o pobre coitado já deu, todas as psicoses e coisa e tal. Mesmo assim… bom. Eu aceitei.
Sim! Foi estupidez!
Eu juro que não ia aceitar, estava quase desligando quando Nara e Lise pareceram se ligar do assunto do telefonema e começaram a me mandar sinais incompreensíveis. Disse para Phil retornar a ligação dali a uns cinco minutos e, depois de ordens intolerantes de Lise – praticamente gritadas, sabe-se lá por que, alguém poderia ouvi-las de cima do Everest – fui convencida a aceitar. Afinal, era só um passeio à luz do pôr-do-sol.
“Aceite! Vamos! Ele é louco por você!”, a pequena dizia. Eu olhava desamparada para Nara, que apenas dizia “seria bom ter por perto um cara que se importa, só para variar”. Eu tentei rebater, lembrando-as de que Luan se importava. Afinal, ele veio me procurar.
Passei todos os cinco minutos considerando os argumentos delas. Eu não queria aceitar, ou, pelo menos, essa era a única consideração clara na minha cabeça. Havia muitas outras, mas todas confusas. Construções lógicas que ainda não estavam prontas. Sabe como é, meus neurônios são lentos, com certeza qualquer coisa mais elaborada levaria tempo para ficar nítida. Mas, mesmo lotada de raciocínios turvos, algo foi se montando e algumas pecinhas foram se encaixando até que considerei a possibilidade de concordar com as meninas. Não consigo explicar qual fator foi responsável por esse progresso, pelo menos por enquanto, mas asseguro que era bastante razoável.
Por isso disse sim, mesmo insegura ainda, já que não estou acostumada a pensar. Sempre acreditei ter uma natureza intuitiva. Sempre optei pelas alternativas certas, não lógicas.
E, bem, veja aonde vim parar. Num sofá, chorando e me entupindo de fritura.
Por esse motivo quis uma vez na vida arriscar a fazer algo lógico. Afinal, os seres humanos são famosos por isso. Por pensar. E que a voz irritante do meu subconsciente vá dormir, sem se esquecer de antes jogar os não faça isso, não faça isso na privada e dar descarga.
Que tipo.
Seria um eufemismo dizer que Phil ficou feliz com minha decisão final. Por que, para falar bem sério, ele entrou em êxtase – me desculpem os curiosos, eu gostaria de poder reproduzir a sua reação, mas as circunstâncias não contribuem. Ele pareceu não acreditar, ficou perguntando “é sério? É sério mesmo?” o tempo todo, isso sem contar a respiração eufórica. É bom ver alguém ficar assim só por poder estar em minha companhia. Coisa que, vale ressaltar, Luan nunca fez.
Ah, qual é o meu problema? Ele não precisa demonstrar nada. Não é culpa dele se desenvolvi um tipo de dependência. Me sinto ridícula por tentar culpá-lo de algo. Por isso, não quero me forçar a pensar no meu passeio com Phil como um tipo de vingança. Porque não é. Luan não merece vingança. Aliás, não só isso. Para ser uma vingança, ele precisaria gostar de mim.
Acho que, sob esse prisma, eu adoraria poder me vingar. Infelizmente, não há pré-requisitos suficientes.
Mas, vamos esquecer isso. Como eu disse, não existe vingança. Até porque, seria cruel. Com Phil. Ele estava sendo sincero. Está preocupado comigo. E não duvido nada que, amanhã, faça o possível para me fazer sentir melhor.
É um sujeito estranho, psicótico, louco. Mas eu gosto dele.
Quem sabe, lá no fundo, um dos motivos para eu ter aceitado foi esse. É um cara ótimo, eu posso ver isso. E se importa comigo. Depois da conversa de Nara, fiquei sem jeito de dispensar mais essa oportunidade. Um pouco de razão ela tem. Eu poderia valorizar mais as coisas que já estão ao meu alcance.
Eu achei que precisava fazer alguma coisa. Por isso aceitei.
Só não entendi muito bem a sensação de prazer de Lise. Ela pareceu satisfeitíssima com a novidade e começou a perguntar milhões de coisas sobre Phillip. Não me deixou em paz nem por um segundo, nem quando eu quis descer para conferir se a porta estava mesmo trancada, pois pensei ter ouvido o trinco abrir. Mandou Nara nessa difícil missão.
Sei lá.
Pensando por outro lado, depois de hoje, vê-la entusiasmada por conta da minha atitude pró-ativa não é algo tão incomum, acho.
… Ou… espera.
Não. Não, espera aí. Tem algo muito errado nessa história. Caiu a ficha. A maquininha voltou a funcionar. As roldanas do meu cérebro giraram.
Isso é desesperador. Humilhante.
Eu sei por que definitivamente aceitei o convite de Phil.
Não tem nada a ver com o papo de Nara. Nada a ver com a insistência de Lise. E também não tem a ver com Phil ser ou não um cara bacana, embora isso seja uma parcela. Bem pequena, mas é.
O problema é que… Phil está preocupado comigo, Nara está preocupada comigo, Lise se preocupou comigo…
E Luan também. E aí está o problema.
Ele veio me procurar. Para esclarecer as coisas. E isso só pode ter três explicações:
a) Ele veio atrás de mim porque não agüentava mais todo mundo insistindo e lutando pelo esclarecimento da situação, a fim de evitar o prolongamento do meu estado;
b) Ele veio atrás de mim porque sente algo pela minha pessoa e não quis que nada atrapalhasse nosso relacionamento ainda inexistente;
c) Ele veio atrás de mim porque ficou preocupado com o meu bem estar. Em outras palavras, sentiu pena.
Frente a todas as hipóteses, eu pisei na merda.
Porque, não importa qual das três teorias é a verdadeira, nas três Luan sabe. O que eu sinto.
Claro, nenhuma novidade, essa informação já tinha passeado diversas vezes entre meus neurônios. Se bobear até já dançou ciranda com eles. Eu já sabia. Mas ainda não tinha me dado conta do tamanho do problema.
Nunca me senti tão ridícula.
Não deveriam fazer isso. Phil, Nara, Lise, Luan. Ninguém deveria estar assim. Porque eu não deveria estar assim. Estou agindo como se tivesse sido traída. E não fui. Luan não é nada meu. Nada. E, depois de ter saído correndo daquela forma, cavei minha própria sepultura amorosa.
Fico me perguntando o que Luan estaria pensando de mim. Estaria pensando como sou idiota por levar esse tipo de coisa a sério? Talvez.
Cale a boca, Lune, “talvez”? “Talvez” é o tipo de resposta que se dá para quem pergunta se você tem apenas uma célula cerebral.
A resposta certa é: COM A MERDA DA ABSOLUTA CERTEZA.
Foi isso que me fez repensar a decisão e aceitar o convite de Phil. Quem passou horas e horas num sofá vendo Moulin Rouge e se entupindo de Coca-Cola/batatas fui eu. Não Luan. Eu fiz isso. Porque sou idiota. Porque não segui o que Lise disse. Preferi me recolher em uma dor que, desde o principio, reconhecia como incoerente. E, diante de tudo isso, percebi a necessidade de sair do poço. Quem sabe tentar restabelecer a minha auto-estima. Mostrar para todo mundo que não estou no chão, deprimida, arrasada, digna de preocupação. Mostrar para Chantal que eu ainda posso ser melhor do que ela.
O.k., estou me sentindo estranha.
Isso é tão… normal. Comum. Tão humano que não parece eu mesma.
Acho que preciso de um chá bem forte e umas pílulas calmantes.
Esqueça, alguém traga a morfina.
Já eram quase onze horas da noite quando decido assistir o filme pela última vez – hoje, obviamente – e descer para caçar uma bebida. Meu pai ainda não voltou e não tenho certeza de que voltará. Digamos que Lise foi muito eficiente. Sim, porque só pode ter sido ela a responsável por arrancar o pobre de casa. No mínimo bajulou a mãe para resolver o problema e convencê-lo a passar a noite fora.
O mistério é: se ele não voltou e não esteve em momento algum em casa, da onde veio o pacote de batatas fritas parado indefeso e inocente sobre a mesa da sala? Não havia batata alguma na última vez que desci.
Com certa dificuldade, quebrei a cabeça para tentar achar uma explicação para o mistério da batata. E, como facilmente se supõe, não consegui. Me conformei com a teoria de que, como não pus os pés nessa escada depois da chegada de Lise – pelo menos não de acordo com minha memória – ela poderia ter comprado, largado na primeira superfície e se esquecido de avisar.
Claro que há um furo nisso, pois Lise é do tipo que não se esquece de nada. Ainda mais depois dos meus insistentes pedidos por comida. A propósito, Lise também não faz é do tipo que traz comida para os outros. Porém, o sono e o cansaço não me permitiam pensar em muito mais, então peguei o saco e subi, pressionando-o contra meu peito como uma viciada em cocaína faria depois de uma semana sem ver um grama sequer na frente. Por hoje, vou me limitar a assistir meu filme e, com sorte, consigo pegar no sono ouvindo o Ewan McGregor cantar que o amor nos leva ao lugar ao qual pertencemos. Numa dessa, dormindo assim, consigo sonhar com aquela pessoa, que sempre visitava meu sono. Sonhar com seus braços me envolvendo e com seus dedos acariciando minhas bochechas.
Ou, não sei. Mesmo depois de tudo, não tenho certeza se é necessariamente ela que quero ver quando fechar os olhos. Desde que Luan assumiu o papel, os sorrisos ao acordar têm sido maiores. Com ele, tenho um olhar, um cheiro, um toque para reconhecer. Uma voz para ouvir. Mesmo que tudo só aconteça no meu próprio mundo.
Meu mundo. Às vezes, gostaria de permanecer nele. Às vezes acho que já estou. E, às vezes, acho que o deixei há muitos anos.
Engraçado como tudo fica acessível nos sonhos.