sexta-feira, 23 de abril de 2010

Capítulo 31 ~ "Algo Diferente"

Ic.

Estão ouvindo?

Ic. Ic.

Pois é, eu também.

— HÁ HÁ HÁ! – uma longa e barulhenta tomada de fôlego – HÁÁÁ HÁ!

—PARE Chantal! Oh, sua vadia, está fazendo Isabelle morrer de vergonha!

Lune – Nara cochicha ao meu ouvido – algo não está certo.

Ic.

— Cale a boca, Nicole! Ela está piando igual a um passarinho!

Por que não está certo? Eu estou achando ótimo – cochicho de volta.

— Isso se chama SOLUÇO, sua anta, e você está gritando igual a uma garotinha vendo a Britney Spears! – censurado – que pariu, você é uma desgraça mesmo, pare de rir como uma velha que foi – censurado – decentemente pela primeira vez em anos, eu estou com dor de cabeça!

— Alguém pode me emprestar um gravador, eu preciso ter isso de recordação – digo.

Vejo Luan olhar para todas as cinco com uma expressão totalmente, totalmente abismada.

— Eu tenho um – diz Lise, sentada ao meu lado – ele é meio velhinho, mas vai servir.

— Ótimo, ótimo. Está aí?

— Sim, sim, está aqui no bolso já, é de praxe – diz ela, tirando o aparelhinho do pijama.

Bom, o quê posso dizer? Pouco tempo depois de Chantal ter, corajosamente, se oferecido para tomar mais um gole, a carinha comovente de Lise a convenceu a tomar um pouco mais. Quando eu vi, a pobre ruiva estava persuadindo insistentemente suas companheiras a fazer o mesmo, talvez por querer não ser a única a engordar, talvez por simplesmente ter enlouquecido. Mas o fato é: todas tentaram, ao menos mais um pouco, ingerir a meleca calórica. Sabe como é, “por Luan!”, como Chantal disse em determinado momento.

E deu nisso.

— Nara, me empresta esse seu copo – Phil dirige-se à minha amiga. Ela lhe entrega o copo. Ele cheira, faz uma careta, cheira melhor e experimenta um gole muito pequeno. Depois, projeta uma careta imensa.

— Nossa, realmente é como tomar mel com açúcar – conclui.

— Isso todo mundo já sabe, gênio – Lise ironiza.

— É, gênio. Mas dá pra perceber que tem "algo diferente" aqui.

— "Algo diferente"? – Nara parece surpresa.

— Sem dúvida, gata – Phil diz, ainda observando o copo.

Mesmo que ele tenha dito isso numa casualidade óbvia, senti Nara estremecer um pouco.

Oh yeah, baby. Muito "algo diferente" – diz Lise.

— O que seria esse "algo diferente"? – pergunto.

— Só tem uma coisa que poderia causar o efeito que estamos vendo – diz ele.

— O quê? – insisto.

— Você é meio inconseqüente, não é? – Phil pergunta tranquilamente, me ignorando.

— Na verdade, não. Apenas "algo diferente" significa noção imediata do fato e isso não podia acontecer. Fui esperta o bastante para solucionar o problema.

— Claro, aí você jogou três quilos de açúcar dentro de uma jarra de um litro cheio de… bom, “algo diferente”.

— HÁ HÁ HÁ! Eunãoconsigopararderir! – longa e barulhenta tomada de fôlego.

Por que ninguém me responde o quê é?

— Ela tem razão, quanto mais açúcar menos dá pra notar – Nara, após experimentar um gole microscópico, também já entendeu do que se trata o “algo diferente” – mas mesmo assim, não teria resultado nessa cena toda com tão poucos goles. Muito menos em tão pouco tempo.

Lise abaixou-se em nossa direção, fazendo sinal com o indicador para abaixarmos também.

O segredo, chérie – sussurra – é a mistura.

Ic.

— Impossível – Nara diz, inconformada – você não pode ter treze anos.

— Eu assisti muito "O Pimentinha" e filmes afins. Apenas aperfeiçoei o dom – a pequena sorri.

— Fico imaginando quanta mistura de "algo diferente" tem aqui dentro – Phil conversa com o copo.

Eu desisto de tentar saber o que é o "algo diferente".

Ic.

— Chantal está tão rosa que parece uma porca! – uma grita, apontando e se dobrando de tanto rir. O engraçado é que ela ri sem soltar som algum.

— Que saco Cécile! Não tem respeito por alguém morrendo de dor de cabeça, que inferno, vai tomar no – Nicole grita, irritadíssima, segurando os ouvidos com as mãos.

— Isso pode nos trazer problemas – Nara parece preocupada.

— Isso se elas se lembrarem – diz a cabeça do crime.

— Mesmo que lembrem, duvido que vão conseguir saber o porquê – observa Phil.

Luan envia olhares que parecem flamejantes na direção de Lise.

— Lune, que pena que não experimentou a bebida. Eu estava quase apostando que você não ia se ligar a tempo – a menor fala. Sacana.

— Você acha o que? Pareço burra? Eu me dei conta imediatamente do perigo e me livrei do problema sem o menor esforço.

Qual é, uma mentirinha para salvar o orgulho não pesa.

A propósito, Lune – Lise sussurra ao pé do meu ouvido, abrindo um sorriso mais largo de um lado só (coisa que me dá arrepios) – Luan estava sem camisa no quarto, quando fui chamá-lo.

Meu estômago simplesmente quis trocar de lugar com minha garganta. Senti a boca secar em segundos. Tão seca que não me surpreenderia se tivesse grãos de areia.

Maldita. Foi por isso que ela se ofereceu para chamar o desgraçado no meu lugar.

Ficamos mais uns minutos admirando o ambiente, eu ainda pensando em Luan sem camisa, saindo do banho. Phil agora estava quase colado comigo, e de fato estaria, se não fosse Nara em seu caminho. Ela parece estar um pouco irritada, seus joelhos estão apertados porque ele não pára de se aproximar e parece nem estar notando sua presença. Eu já tentei me afastar três vezes.

Com uma irritação profunda na voz, Nara fala ao meu ouvido:

Será que podemos conversar lá fora?

Eu a olho com uma expressão de interrogação, mas faço um sinal positivo. Levanto e atravesso a sala, passando pela porta colorida que dá acesso à lateral da casa. Vejo Luan me acompanhar com os olhos, mas finjo nem ter notado.

Qual é, ele não está lá com todas elas em volta, babando? Tem cinco garotas ali, indo do cacheado ao escorrido, dos arcos de cabelos às franjas, do louro feio ao ruivo. Eu não entendo. Quem precisa de louro-prateado e olhos amarelos quando se tem isso?

Eu já não sou normal mesmo, posso correr o mundo atrás de alguém que também tenha uma disfunção genética e formar uma nova civilização.

Ou virar uma solteirona e entrar pro Greenpeace.

Pense bem, melhor do que entrar pro grupo feminino de coreografia, como minha professora de ballet sugeriu há alguns anos atrás. Eu disse: "não, obrigado, prefiro ser gente". Não que garotas de grupos de dança não sejam gente, eu adoro dançar. Mas é que as meninas da minha escola não são. Um dos requisitos para entrar é não ter namorado (um dos motivos pra ela ter me oferecido a vaga), pois o grupo exige muito tempo de dedicação. Ao menos foi essa a desculpa dela. Todo mundo sabe, entretanto, que o motivo da exigência é o grande "assedio" do público masculino, se é que me entende. O grupo de coreografia feminino é quase como um certificado de "sou bonita e gostosa" e os figurinos que elas escolhem costumam mostrar bem isso. Dá para sacar, facilmente, que o público masculino não assedia ninguém. Ele apenas estende a mão e pega o que lhe é ofertado.

Por isso gostava mais do ballet.

Sentei na fonte do jardim.

— Lune… – parei ao ouvir a voz de Nara ao meu lado. Tinha até me esquecido de que ela estava ali.

— Você merecia uns cascudos, hein? – disse irritada, mas em um leve tom de brincadeira.

Porém, engoli a voz. Ela não parece bem.

— Desculpe, mas não consegui evitar que viessem – dizia, fitando o chão – na verdade vim mais para me desculpar por isso. Seu pai me ligou hoje de manhã contando a história toda e pedindo para eu avisar a direção. O professor anunciou para sala que você não estava bem e por isso Luan também não tinha aparecido. Você sabe, depois disso fizeram comissão para vir te ver. Me ameaçaram dizendo que se eu não explicasse o caminho iriam jogar meus cadernos no lixo ou abrir um frasco de shampoo dentro da minha bolsa, igual ano passado. Já que foi assim, preferi vir junto, pra pedir desculpas.

E eu aqui brava com ela. Ah, Lune, você é uma porca sem coração.

— Ah, Nara, não deveria ter se preocupado com isso – falei, totalmente sem graça. Estou com vontade de pegar Nara no colo – como elas tiveram coragem de falar isso pra você? Deveria ter me contado!

Mas ela não me respondeu. Não falou nada. Olhou para o chão, com um sorrisinho que nem deveria ser sorriso.

Estou me sentindo péssima.

— A minha vontade era pegar uma por uma e afogar aqui nessa fonte – disse, para tentar fazê-la se sentir melhor. Porém, ela abanou a cabeça.

— Não precisa. Já estou acostumada. E duvido muito que fossem de fato fazer aquilo, falaram apenas porque… bom, deixa pra lá – ela ergue a cabeça e seus olhos me parecem um tanto brilhante.

— Bom, Lune – Phil fala de repente, me assustando – eu também vim só para me desculpar, por ontem, sabe como é. E pra te ver, claro, adoro fazer isso.

Me desculpe Phil, mas não estou nem aí para suas cantadas agora.

— Anh… então, vou indo – ele fala com um sorriso encantador.

— O.k.

Desculpem, foi o máximo que saiu.

O cara bonitão de olhos verdes lança um sorriso ainda mais charmoso em minha direção e caminha para o portão. Percebo que minha amiga o observa se distanciar, com os olhos meio caídos. Depois volta sua total atenção para o chão. Há poucos metros de Phil desaparecer de vista, volta a falar:

— Ele ficou muito preocupado quando o professor disse que você tinha passado mal.

Houve uma pausa constrangedora entre nós. Quer dizer, eu não tinha o que falar, fiquei meio sem ação. Estava pensando em dizer algo como: "ah é?" ou "sério?" só para não ficar em branco, mas não consegui nada além de balançar os ombros.

Então, solta um suspiro pesado.

— Tenho que ir – fala, sem me olhar nos olhos.

Nem ao menos me abraçou como sempre. Algo definitivamente não está bem.

Quer dizer, desde que chegou percebi que estava um pouco para baixo, mas achei que fosse só pela companhia. Mas agora, parece que o problema é comigo.

Fiz mesmo alguma coisa que a deixou assim?

Alguns passos à diante ela se vira.

— Seu pai contou que deixou você ficar em casa à tarde por causa de um compromisso hoje. Espero que seja divertido.

— Compromisso? – pergunto totalmente espantada, com os olhos arregalados e tudo. Eu não lembro de compromisso nenhum.

— É… ele disse que como vocês iam sair e ele não iria conseguir desmarcar, preferiu te dar o dia todo em casa.

— E… – pergunto, com medo da resposta – ele por acaso contou qual seria esse compromisso tão importante?

Ela me olha com uma cara estranha, como se estivesse pensando como eu posso ser tão do jeito que sou. Tem alguns dias que até eu me surpreendo. Na verdade, todos os dias eu me pergunto como consegui chegar ao Lycée.

— Vocês vão jantar, Lune. Imagino que seja em um restaurante de alto nível, ele não desmarcou o jantar de hoje porque só conseguiria outra mesa sexta-feira em mais ou menos quinze dias.

O desespero começa a fazer minhas mãos suarem. Não, jantar em família não, por favor.

Então lembro das caixas sobre a minha poltrona.

Ela tem razão, é um restaurante de alto nível. No mínimo, o que a caixa guarda é o vestido.
Eu sei o que está acontecendo. Papai fica com peso na consciência por não poder passar mais tanto tempo comigo e, como Victoire sente o mesmo, eles unem o útil ao agradável nos levando em seus passeios.

Quem sabe eu deva explicar pro meu pai que tentar repor os preciosos minutos que perdi com ele ao lado de mais três pessoas não é o ideal. Quer dizer, não funciona.

Eu já estava de saco cheio antes, agora, depois dessa tarde, estou perturbada. Principalmente se tratando de Luan. Para minha própria sanidade mental, acho que não deveria ir. Porém, quando digo isso a Nara, ela me lança um olhar, no mínimo, muito assassino.

Pude sentir um quase ódio florescer em seus olhos.

— Como assim "acho que não vou"? – o tom de ira usado nessas poucas palavras me fazem encolher pelo menos três centímetros. Aquele tom baixo e pausado que te dá a impressão de perigo iminente. Eu poderia ter dito alguma coisa, mas minha voz desapareceu. Engoli em seco.

— Escute aqui, Lune Noire – sua voz ainda é baixa e suave. Seus olhos brilham a chama da revolta e da destruição do mundo. É sério, a menina incorporou alguma coisa – você vai nesse jantar. Vai usar um vestido lindo. Vai usar uma linda fita no cabelo e uma linda maquiagem nos olhos. Não se atreva a vir com essa só porque está com dor-de-cotovelo.

— Mas… – tentei argumentar em minha própria defesa, porém, sem chance. Ela estava com raiva. E quando Nara está com raiva, você não tem chance contra ela, porque em 99,7% dos casos ela tem razão. Poucas, muito poucas vezes na minha vida eu a vi assim, para vocês terem idéia, e olhe que ela é minha melhor amiga há anos.

— Eu sei e você também deveria saber que é muito mais bonita que qualquer uma delas lá dentro – finalmente o rostinho Serial Killer se afasta do meu nariz, deixando os cachinhos voltarem para seus devidos lugares sobre os ombros – se está com tanta dor-de-cotovelo assim, está fazendo totalmente o contrário do que deveria. Você deveria entrar naquele quarto, se arrumar como nunca e passar por Luan de um jeito que o faria engasgar com esses fios prateados que você carrega na sua cabeça.

— Que, inclusive, deve ser a única utilidade dela – acrescenta, de uma forma cruel.

Senti minha bunda quase quebrando o cimento, tamanha minha vontade de entrar nele. Eu preferia que Nara tivesse me batido, eu me sentiria melhor.

— Seria muito bom se – ela recomeçou – ao invés de ficar se fazendo de menininha mimada que não tem o que quer, você fosse você mesma, tentando pelo menos fazer ele enxergar o que está perdendo. E eu acho que é isso que você vai fazer, se não quiser ter uma morte bem dolorosa e esmiuçada.

— Ma…

— Você entendeu, Lune? – ela termina com o rosto a mais ou menos dez centímetros do meu e eu, de fato, calo a boca. De medo.

Essa foi a pior esculachada que já tomei na vida.

— Eu não sei o que aconteceu com você, você não era assim.

Me lembrem, por favor, de nunca mais me fazer de imatura na frente da minha grande amiga, para minha própria saúde.

— Agora eu tenho que ir – ela se recompôs, ainda me encarando fundo, e eu concordei com a cabeça – você vai fazer o que eu te disse?

Concordei com a cabeça (de novo). Depois, ela me lançou um breve sorriso e virou as costas. Deu alguns passou e virou de novo.

— Você não sabe a sorte que tem, Lune.

E foi.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Capítulo 29 ~ Doce Criança

Ele deve ter acabado de sair do banho. Nem fez questão de secar o cabelo. Claro, é um cretino, gosta de se sentir o gostosão. Exibir a sua essência de "pegador".

Não, só pra vocês terem uma idéia: sabe quando você não seca as costas direito e, quando põe a blusa, ela fica grudada com enormes círculos transparentes delineando cada mísero músculo?

Voilà.

Senti um arrepio na espinha quando vi aquela camiseta colada nos ombros de Luan. Sim, porque é automático. Você vê um cara assim e imediatamente imagina a camiseta evaporando, dando lugar à pele, lisa, macia, cheia de gotinhas de água…

O maldito fedia a charme.

Engoli em seco e fingi que não era comigo. Mas todas as outras da sala, menos Nara, pareceram saltar de êxtase ao ver o cara alto, forte, molhado e sensual descendo as escadas da minha casa, esfregando o cabelo e fazendo espirrar agüinha por todos os lados. Sem falar que, como a camiseta não era um absurdo de comprida, seu braço levantado a fez subir, deixando um fio de pele à mostra. Sim, bem no ilíaco. Sim, com a calça jeans caindo, frouxa. Sim, com um pequeno pedaço de tecido preto aparecendo. Aquele pedaço de tecido preto.

Só bastava uma piscadinha e ele teria qualquer uma de nós aos seus pés, sem nem fazer esforço. Eu seria a primeira a correr.

O que é isso Lune? Que falta de amor próprio.

Quase me dei um tapa.

Com muito calvário e sacrifício, tirei os olhos dele, do seu ilíaco e do pedaço de tecido preto. Também fingi não notar todos os cumprimentos de diferentes níveis de sedução destinados à sua pessoa (desde beijinho certeiro na bochecha até aceno com cruzada de pernas). Acabei parando em Lise. Ela parecia infantil dentro do pijama que vestia. Se bem que, depois de ter a oportunidade de vê-la com vestimentas grunge, jamais alguém se deixa levar por algo tão banal como pijamas.

O quê? Ah, sim, um pijama. E pantufas. De patinhas de urso. Ela vestiu isso o dia todo, disse que estava com preguiça, não dava a mínima para que horas fossem nem para o fato das pantufas darem chulé e mandou tanto eu quanto Luan tomar… bem, tomar. Mesmo ficando meio surpresa, achei bastante adequado para o tipo.

A criatura me olhava curiosa. Fico imaginando o que ela estaria pensando, com esse ar esquisito.

— Já sei! – ela mandou, de repente, forjando a voz para transformá-la em algo suave – vou fazer um suquinho pra gente, que tal?

— Meu Deus, isso não seria perfeito? Obrigada Lise! – disse Chantal.

Um coro de "Meu Deus, isso seria mesmo perfeito, obrigada Lise!" seguiu-se.

Não as culpe. Elas não são garotas más, não são cruéis e não são treinadas para humilhar e planejar a destruição dos outros, essa é apenas a minha forma de ver as coisas. Não esqueçam que eu sou a narradora aqui e faço o que quiser com isso.

— Então, Luan, que anda fazendo nessa vidinha sem graça dentro de casa?

— Ah, o de sempre, comendo, dormindo, respirando, tocan…

— Ai, que coisa chata! Por que não sai com a gente pra se divertir?!

— Sim, nós saímos sempre tão sozinhas…

— Verdade, tão solitárias, indefesas, cinco garotas pela rua ao anoitecer…

— Você iria adorar!

Querem saber, esqueçam quem narra essa bosta. Elas devem ser mesmo crias do capeta.

Lise aparece 15 minutos mais tarde, com uma bandeja.

— Quem gostaria de uma bebidinha? – ela fala com uma estranha ênfase no "bebidinha". Sorria como uma modelo de consultório de ortodontia. Logicamente, todas soltaram exclamações de prazer, já que a irmãzinha bonitinha do gatão ali é muito querida por ele. Eu, distante, no parapeito da janela, desejava arrancar Nicole e sua amiguinha desconhecida à mordidas de perto de Luan.

Para quê? Ele nem ao menos olhou para mim desde que desceu.

Lise começou a distribuir os copos, recebendo piscadinhas frenéticas de todas e retribuindo o gesto. Estranho ver uma garota como ela, que usa jaquetas gigantescas e calças retalhadas interpretando um papel tão… puro.

Ela passa por mim e me dá um copo, fazendo um cortejo. Sinceramente, me surpreendi. Eu pensava que ela ia, sei lá, botar fogo na cozinha, jogar merda no cabelo delas, arrancar saias. Mas não, ela volta com uma bandeja cheia de suco.

Decepcionei.

— Esperem meninas, esperem! Faltou o brinde! – diz Chantal.

Um clique estalou na minha cabeça quando vi Lise se animar toda e dizer com um brilho nos olhos:

— Ótima idéia, assim todas tomam juntas!

Ah, meu Deus.

Ela…

É claro.

E a desgraçada nem me avisou de nada!

Olho para Luan e percebo que suas mãos estão vazias. Santo Cristo, como eu sou imbecil! De que me servem um belo par de neurônios no cérebro se eles nunca se cumprimentam? E o que eu faço com esse suco?

— Vamos brindar o quê? – diz Lise, com uma vozinha inocente. É fácil enganar todo mundo com essa carinha de criatura de Jesus.

Calma Lune, relaxa, desencana. Tudo que você precisa fazer é pensar.

Ah, claro.

É só não beber. Óbvio, bota na boca e finge que bebe.

É.

… E se ela colocou algo perigoso aí? E se minha boca amortecer? E se tiver tinta nesse troço? E se tiver algum veneno mortal? E se tiver laxante?

Olhando bem, parece suco de uva. Ou seja, líquido escuro. Ou seja mais ainda, líquido suspeito. Isso, Lune, você está conseguindo pensar, haha!

Legal, não posso perder a técnica. Olhe de novo, de novo…

— Aaah, por que não brindamos à você!? Você é tão doce! – respondeu Chantal.

— Por que não brindam a saúde da Lune, não estão aqui por isso? – intervém Nara, pela primeira vez, com um pesado tom sarcástico na voz.

Calem a boca!

— O.k., o.k., isso também – disse a ruiva, tendo como fundo sonoro um risinho preso de alguém e um "hum" de Nicole, que acabou me distraindo.

Vai Lune, vai, vai, você tem pouco tempo.

Bolinhas, tem bolinhas no suco. Mas isso não me diz nada, é normal ter bolinhas em sucos. Se bem que tem muitas bolinhas, mas não consigo imaginar o que são.

— Temos que falar algo sobre Luan também, ele não pode ficar de fora! – sei lá quem disse.

— Não, não precisa, é sério – Luan fala, provavelmente sorrindo.

O copo! O copo é colorido, não é transparente. Não dá pra ver o conteúdo, isso significa que ninguém vai perceber se tem ou não alguma coisa dentro!

Isso não ajuda. E agora, como eu me livro disso?

— Então brindaremos à sua humildade – exclama Nicole, olhando profundamente nos olhos de Luan – está decidido.

Ai Deus, é agora, o que eu faço? Pobre Nara, vai beber também.

O.k., hoje ela merece.

— Então, um br… – começa Chantal, mas, parece que por um voto de misericórdia, silencia. Aí, percebo um som esquisito ao fundo.

A campainha.

— Eu atendo! – grito, levantando num pulo, como se eu esperasse que mais alguém quisesse ir atender. Caminho até a porta com os joelhos em crise e olhando todos os cantos para ver se acho alguma lixeira ou recipiente ao alcance.

Eu nem me preocupei em imaginar quem seria. Eu agradeceria mesmo que fosse um criminoso fugitivo.

Um cara alto, bonito e com cabelos louros irradiando luz surge na minha frente.

— Phil, o que está fazendo aqui? – digo, com um olho mais aberto que o outro.

— Oi Lune – ele me cumprimenta com um sorriso amarelo.

HÁ! Nem acredito, tenho uma solução!

Diante desse fato, esqueço que ele é Phil, o desequilibrado responsável pela minha vergonha escolar dos últimos dias, e corro para a varanda, fechando a porta logo atrás.

— Escuta… – ele começa, inseguro – o professor hoje nos avisou que você não passou muito bem ontem… e eu quis vir te ver.

Mas eu não estava interessada em responder, sorria como nunca na vida. Eu achei uma solução, e sozinha!

Depois de uns segundos, ele notou meu sorriso e tive a ligeira impressão de vê-lo se animar. Talvez tenha passado por sua cabeça que eu sorria por sua causa. De qualquer forma, isso se dissipou quando, com um suspiro de alívio, despejei o líquido do copo na saída da calha.

Um dos momentos mais marcantes da minha vida.

Olho para Phil.

— E bem… e eu também queria te pedir desculpas, sabe, pelas minhas crises no colégio, não sei o que anda acontecendo comigo, mas ultimamente parece que eu ando saindo da realidade…

E nisso, há um silêncio. Da parte dele porque espera algum tipo de resposta e da minha porque ainda penso no líquido estranho, se dissipando no ralo mais próximo.

O clima ficou meio constrangedor. Quer dizer, ele veio até aqui, para me ver, para pedir desculpas, se redimir, como o inglês educado que é. Eu deveria estar atribuindo mais atenção ao rapaz. E também, vai que o cara não raciocina muito mesmo? Ele pode ter um ataque psicopata de repente.

Ouço risadas vindas da sala. Devem ter rido de algo que Luan disse. O que será que elas fariam se eu fechasse a porta na cara de Phil? O que será que Luan faria se…

— Quer entrar? – fala sério, sou uma alma muito bondosa.

— Claro – responde.

— Aconteça o que acontecer, não aceite o suco.

Talvez eu esteja sendo um pouco cruel. Estou convidando Phil para entrar apenas por interesses próprios, e o pior, interesses em outra pessoa. Na verdade, não pensei em nada na hora. Fiz o que senti vontade.

Por outro lado, de que adianta eu ficar me remoendo pelo cara que está lá sentado no meu sofá com cinco menininhas rindo de tudo e mostrando as pernas por qualquer motivo? Ele não está se importando comigo. É verdade que ele também não me destratou. Apenas não me dirigiu a palavra. Sim, eu sei, ele não é obrigado a fazer nada disso, ainda mais na frente de outras garotas. Mas… eu queria que ele pulasse nos meus braços e mandassem todas elas se catar. Lógico, isso não vai acontecer mesmo.

Mas fiquei com dor-de-cotovelo.

— Phillip! – Chantal (como sempre, fazendo o papel da anfitriã insuportável) grita – aceite um suco e brinde com a gente!

Phil me olha significativamente e diz que não, obrigado. Pessoa sábia, até me sinto emocionada em ver que acreditou em mim. Fico tentada a dar créditos a ele.

Vejo Luan.

Sabem para o que ele olha? Para Phil. E com o cenho meio franzido.

Até aí tudo bem, não fosse o fato de, em seguida, ele olhar com a mesma expressão para mim. Raiva? Possível.

Mas não. Não era só isso.

Pela primeira vez, quis realmente estar ali. Ele olhava para mim com uma expressão muito concentrada. Desejei muito que no momento estivesse batendo um ventinho, para balançar meus cabelos, tipo cena de filme…

Espera. Isso está acontecendo. AHÁ!

Como em câmera lenta, deslizo o pescoço mais a frente, na direção da brisa e dos meus fios claros. Então, capricho no olhar fatal. Pisco devagar.

Quando percebo, o seu cenho não está mais franzido.

— Bom, pessoas, então vamos brindar! À Lune, nossa colega, que infelizmente passou mal ontem, à Lise, que preparou essa bebida e também ao Luan, pela sua humildade e todo o resto!

E todas tomam um gole – no meu caso, gole fantasma – precedido por risos. Percebo uma veia saltar no pescoço de Luan.

A primeira coisa que me preocupou foi Nara, mas ela não tinha nem feito menção de erguer o braço.

Que droga, por que eu não pensei nisso!?

—… Lise, do que é esse suco, chérie? – Nicole pergunta, com uma ruga saltando no canto da boca.

— De uva, por quê?

— Nossa, como está doce… – uma garota perto de mim reclama.

— Está ruim? – diz Lise, fingindo uma voz sentida.

— Minha dieta foi pro espaço – a garota com a aparência mais meiga de todas soltou essa, num tom lamentoso.

— Poxa, me desculpe… – Lise lamentou ainda mais – talvez tenha exagerado no açúcar.

— Ah, Isabelle, não ligue para uma dieta boba, afinal, estamos numa ocasião diferente. Às vezes é bom dar uma escapadinha – consolou Chantal.

Pela expressão de algumas, tento imaginar o quão doce isso está. Mesmo assim, não vejo nisso uma idéia brilhante. Pelo jeito nem Luan, pois parece aliviado. Não muito, claro.

— Se tiver ruim vocês não precisam tomar – Lise fala num gemidinho que realmente dá vontade de colocá-la no colo. Eu não sei como ela consegue fazer isso, mas se eu soubesse, com certeza tiraria algum proveito.

— Ah… é que está… um pouquinho enjoativo… – diz Chantal.

— Tem um gostinho diferente também – Isabelle fala, olhando para o próprio copo.

— Tem tanto açúcar assim? – pergunta Luan, num tom sério, apesar de claramente relaxado. Aparentemente a ameaça de um perigo maior dissipou-se.

— É, um pouco – diz uma delas.

— Um pouco? Isso aqui está até grosso! – uma garota, provavelmente mais preocupada com as calorias do que com a bajulação, diz, cheia de nojo – é como tomar mel, açúcar e um vidro de adoçante juntos!

— Lise, o que você fez? – ele questiona, com uma insinuação óbvia, ao menos para mim. Todas interpretaram como uma pergunta comum, mas eu entendi o que ele realmente quis dizer: "Qual foi a merda que você jogou aí dentro?".

Phil não pára de se aproximar. Daqui a pouco lhe dou um tiro.

— Ah, Lu! – me assusto com o berro de Lise e a vejo se atirar em torno da cintura do irmão. Com o rosto escondido em seu peito (coisa que me causa uma inveja profunda) ela continua pesarosa – eu errei na mão, eu não queria contar porque fiquei com medo… eu estava colocando o açúcar, mas me distraí com um passarinho pousado na janela – meu Deus – e… metade do pacote caiu dentro da jarra.

Ouviu-se um "aaaaaah" uníssono na sala.

— Lise – Luan massageava os olhos – nós temos um vidro muito pequeno para guardar o açúcar, por que você pegou o pacote?

— Pois é! Mas o vidrinho estava quase vazio, então peguei o pacotinho…

— Lise, aquele "pacotinho" tem cinco quilos.

Eu vi muitas caretas se formarem. Até eu fiz uma.

— Bom… agora tem menos – ela terminou, sorrindo para o irmão. Seus olhos reluziam maldade.

Houve um silêncio. Luan sabia: a história do vidrinho vazio era mentira. O coitado está tão cheio que só falta explodir. Quer dizer, isso se ela não tiver jogado ele também. Mas, acho que esse detalhe não precisa ser comentado.

Desculpem – a pobre menininha incompreendida sussurrou olhando para os próprios pés. Isso comoveu muita gente. O problema é que comoveu Chantal até demais.

— Oh, queridinha, não fica assim… sabemos que foi sem querer. Olha, está um pouco enjoativo, mas te agradaria se eu tomasse mais um gole?

Para que perguntar?

— Uau, você faria isso? Isso ia fazer meu coração pular!

Chantal tem um coração bom demais. E dessa vez estou sendo mesmo sincera. Ela sorriu e, com muita, muita garra, tomou mais um gole, enorme. Eu a vi até mastigar a gosma antes de engolir.

Sabe, é uma pena elas não gostarem de mim. Se gostassem, poderíamos até ter uma pequena afeição.

Claro, sem considerar o fato de que seria necessário não estarem interessadas no meu cara.

Meu cara? Cale a boca Lune, você não tem cara.

Consciência maldita.

Eu não deveria dar atenção à você, mas isso é melhor do que escutar a conversa insuportável do quinteto sentado nos meus móveis.

Pelo menos, nesse momento.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Capítulo 27 ~ Pacto

Nienna… Nienna…

O tempo se aproxima…

Mas ainda não é hora de saber…

— Bom dia…

— Bom dia, meu anjo – papai diz, jogando três pãezinhos de chocolate sobre meu prato. Uma prova de que ele está mesmo tentando me agradar, ele nunca, nunca, compra pães de chocolate pro café da manhã. Mesmo não sendo tão manhã assim.

E ele me chamou de anjo. O caso é sério.

— Dormiu bem, chérie? Tudo bem? – acrescentou com um sorriso.

— Sim, só um sonho estranho – respondi sonolenta.

— Pesadelo? – pergunta, interessado.

— Não… só estranho. Algo como uma mulher sussurrando alguma coisa.

Não que eu tenha visto a mulher. Na real, não vi absolutamente nada, pois estava dormindo demais até para isso.

— Você está bem, meu amor? Melhorou? – papai fala com a voz tensa e vem até mim para colocar a mão sobre minha testa.

— É, é, tô bem sim – digo distraída, pensando se já não acabei de responder essa pergunta. Acho que não.

Esses pãezinhos estão realmente bons.

Enquanto penso nisso, vejo Victoire passar ao meu lado, com uma camisola de seda.

— Bom dia Lune, tudo bem? – ela diz carinhosa.

— Bom di… – nessa hora eu engasgo quase cuspindo todo o chá da boca. Por sorte, apenas uma gota escorre até o queixo.

Claro, uma reação completamente exagerada, devido ao meu atual desequilíbrio mental. Afinal, eles são adultos, pessoas feitas e namorados, sim. Aceite isso, Lune, sua tonta, e limpe a baba escorrendo.

— Papai, se importaria se eu fosse comer na sala? – tempo pra pensar, é só o que preciso. Acalmar os nervos, dar uma relaxada enquanto assisto desenho. Talvez cantar um pouco.

— Ah… – ele me deu uma boa olhada curiosa, mas apenas concorda – claro que não, amor, pode ir.

Meio atordoada, pego meu prato, dou um sorrisinho para os pobres apaixonados e me dirijo até a sala do andar de cima, que é o lugar mais distante possível. Eu sei, eu não deveria ficar assim, mas será que não dava mesmo para ir com um pouco mais de calma? Ah, tudo bem vai, eu acabei de passar a noite num hospital, a vida sexualmente ativa deles é momentaneamente irrelevante.

É.

Subo a escada praticamente de olhos fechados, por causa da fadiga emocional. Realmente, acho que não estou bem. E sabe o pior? É que não faço a mínima idéia do porquê. Claro, eu sei que estou cansada por causa da noite no hospital, mas estou falando de algo mais profundo, não físico. Ah, que se dane, eu não estou me sentindo em condições de pensar sobre o motivo de todo esse saco cheio. A verdade é essa, estou de saco cheio. E estou com raiva, sei lá do quê. Certo, raiva é exagero, talvez eu nem tenha a habilidade de sentir raiva. É apenas meu humor ácido, por culpa do estresse e da péssima noite de sono. É isso.

Chegando aos últimos degraus, começo a cantarolar, e me sinto um pouco melhor. Largo o prato e a xícara sobre a mesinha e me jogo de costas no sofá, massageando os olhos. É confortável ficar assim, com as pernas penduradas. Me estico para ajeitar o pescoço na almofada próxima, por pior que ela seja. Eu jurava que tínhamos almofadas macias.

Que noite horrível. Tudo está totalmente vago na minha cabeça e cada lembrança é como se fosse um flash com significado isolado. Não tenho a mínima idéia de como fui parar naquele hospital, meu Deus. Eu lembro… eu lembro… ah, eu não lembro de nada além daquele avental ridículo e de Luan.

Aliás, do sorriso do Luan.

E agora, acordo e descubro que meu papaizinho e Victoire, mãe do cara que me deixa débil, já passaram para o nível superior, que inclui passar a noite juntos aqui, na nossa casa.

Aperto os olhos mais forte.

— Que vida…

— Reclamar da vida não é eticamente correto.

— E quem se importa? – respondo sem ter a capacidade de me mancar.

É, apenas alguns milésimos de segundo depois, pulo para o canto oposto do sofá, olhando sem acreditar para sobre o quê eu estava deitada.

Ou, seria melhor, quem.

Claro. Claro! Quem mais poderia? Ninguém mais que Luan, o próprio, sentado relaxadamente logo ali. Olho para sua coxa, ex-almofada dura e desconfortável, e acho que nunca fiquei tão vermelha na minha vida.

Ah, minha fadinha mágica, por que COMIGO?!

— Você deve pensar que os necessitados da África estão bem piores que você. Isso não é certo.

— Ah, Luan, desculpe… – digo com a voz tremendo e com o peito arfando, ainda sem acreditar.

— Não por mim. Deveria ajoelhar e pedir perdão a Deus, por sua ingratidão.

Esse cara é esquisito. Eu levaria isso em conta se não estivesse ocupada tentando não suar o sovaco.

Sinto muito, eu quis dizer axila.

— Desculpe por não ter te visto aí – falo com uma voz aguda involuntária.

Muito, muito envergonhada. Totalmente envergonhada. Bizarramente envergonhada. Fo… deixa pra lá. Luan apenas sorri e volta sua atenção à televisão, mudando os canais.

— O que está fazendo aqui? – solto num tiro, com os olhos ainda arregalados e os dedos agarrados na borda do sofá, de uma forma meio lunática.

— Ora, eu dormi aqui. Todos dormimos – ele diz confuso, apontando pra Lise que acaba de cruzar o corredor ao fundo com uma escova de dentes na boca – não se lembra?

Ah, eu lembrei, claro que eu lembrei, óbvio que eu lembrei. O QUE VOCÊ ACHA?

Houve alguns segundos de silêncio até eu me lembrar de que ainda é sexta-feira.

Poxa vida, preciso ligar pra Nara. E de uma aspirina.

— Você não deveria estar na escola? – pergunto sem pensar muito.

— Tanto quanto você – ele sorri e responde – aliás, menos do que você, já que seu sono foi bem extenso se contar as horas de desmaio. Pense só, eu fiquei ali, o tempo todo, guardando seu sono como um cavalheiro preocupado. Mamãe foi muito legal em dar a todos um dia de folga. Eu não mereço um dia de folga? – ele conclui, forçando uma expressão falsa e totalmente encantadora em minha direção, com as sobrancelhas arqueadas num ângulo doce, de dar dó.

Nem preciso dizer que precisei usar todo o meu autocontrole para não puxá-lo para o colo e lhe dar carinho.

Meu Deus, ele é tão… aaah!

Sem saber como soltar uma sílaba sequer sem evidenciar a minha admiração, apenas balanço a cabeça. Ele sorri, ainda olhando para mim assim, com a cabeça meio caída para um lado, e, com uma voz rouca, suave e perfeita, pergunta:

— Ei, você vai comer aquilo?

Ele poderia ter me pedido qualquer coisa, qualquer coisa, que eu teria realizado seu desejo sem pestanejar. Vejo meus pães deliciosos, derretendo chocolate, esfriando. Nego com a cabeça e passo o prato de boa vontade, alegre por poder deixá-lo contente. Observo Luan separar o que já estava mordido e, depois, começar a comer. Penso se o separou por que tem nojo de ingerir alguma possível baba minha. O que não seria promissor para, sabe como é, oportunizar um futuro beijo.

É simplesmente impossível não admirar esse cara. Não digo apaixonadamente desta vez, mas frustradamente. Quer dizer, ele está pela segunda vez aqui, casa de pessoas que conheceu a menos de uma semana e está agindo como se morasse aqui há anos. Eu nunca conseguiria. Bom, vendo pela sua aparência – cabelo amassado, calça jeans surrada e uma camiseta azul escura com um rasguinho no ombro – eu diria que está é se sentindo em casa.

Incrível é como ele não consegue deixar de ser lindo. Eu não consigo despregar meus olhos dele.

Está calor aqui não está?

— Está tudo bem? – ele diz de repente, meio confuso – está doente?

Paro de me abanar.

Muito gentil, ele levanta e caminha até o vitral do outro lado da sala. Atrás da sua camiseta tem uma estampa da Madonna, mas optei por não comentar para não deixá-lo constrangido. Ele abre a fechadura e, com a maior facilidade, levanta o vidro gigantesco que eu sempre peno pra conseguir mover do lugar. Quando sinto a brisa chegar no meu rosto, a única vontade que tenho é de levantar e me deixar levar por ela.

Fale a verdade. Tem coisa melhor do que acordar, abrir as janelas e sentir o vento fresquinho da manhã balançar os cabelos? Para mim, existem poucas coisas mais agradáveis.

Então me lembro de que não estou sozinha na sala e devo estar com uma cara muito aérea. Abro os olhos e tenho certeza que até minha testa está vermelha. Enquanto isso, lá está ele, encostado na janela e sorrindo divertido.

— Você é uma criaturinha bem interessante, Lune Noire.

E volta para o sofá, para terminar de comer.

O que eu poderia fazer?

O mesmo que toda garota apaixonada faz em momentos como este.

Sorri.

Logo depois nós nos infiltramos numa discussão acirrada sobre o destino do pãozinho comido. Eu disse que não queria, pois não estava com fome, mas ele se irritou, pegou metade dele e enfiou na minha boca, alegando que perdeu a oportunidade de comê-lo por minha culpa, pois acreditou ingenuamente que eu ainda o desejava. Morreu de rir quando engasguei e quando tive que beber metade do meu precioso chá de hortelã sem nem sentir o gosto, apenas para conseguir respirar de novo. Quase o matei com a almofada.

Qual é. É óbvio que tá rolando um clima. Ainda mais agora, que conheço o motivo da rejeição ao pãozinho mordido. E não tinha nada a ver com minha baba.

Pensando bem, ele não faz o tipo que liga muito para a baba de garotas. Safado sem vergonha.

— Olá! – um coro histérico explode na minha porta mais tarde, naquele mesmo dia.

Estava rolando um clima.

Maldita porta com vidro. Não pude nem ter tempo de correr. Quando vi aquela turba estranha e disforme se aproximando da minha varanda, era tarde demais. Elas reconheceram minha luminosa cabeleira loura e começaram a gritar. Foi tipo cena de filme sabe? A mocinha encontra-se sozinha no local e, de repente, avista um vulto enorme e suspeito crescer atrás do vidro… ela se aproxima lentamente, com a tradicional expressão de "mas que mer…" quando, então, a porta se abre e o monstro pula, com gritos ferozes e garras afiadas e…

Cabelos escovados, sorrisos brilhantes, olhinhos luminosos e delineados.

Eu preferia que fosse o Freddy Krueger. Pelo menos, se ele aparecesse, significaria que eu estaria sonhando.

Mas, o que se pode fazer?

Uma… três… mais Nicole e Chantal… é, é um grupo forte. Bons adversários, bons. Creio que não conseguirei sozinha. Terei que ceder ao jogo do inimigo, momentaneamente.

— Oi meninas! Que surpresa! – sorria Lune, sorria, eu sei que você pode.

Sorri.

Não consigo pensar em mais nada além de matar a infeliz alma que levou toda aquela turma até meu lar.

E matar todo o resto também.

— Lune! Que bom te ver! – a inimiga ruiva dá um passo perigoso em minha direção. Atenção, você está invadindo meu espaço!

— Oi, Chantal – respondo com um sorrisinho forçado. Imagino uma pequena Lune sentada no meu ombro, gritando, com as mãos na cabeça: "Meu Deus! Tirem essa piranha daqui! Meu Deus! AAAH!".

— Lune, será que podemos entrar? – a lourinha passou à frente, com toda a sua franjinha retinha e cílios viradinhos, que gracinha, tchutchuquinha. Pelo menos ela não faz o meu alarme natural antifalsidade querer explodir de tanto berrar. Ela não esconde sua frieza sombria e macabra. Mas não, não esquente, eu sou uma escultura de gelo em pessoa.

Pelo menos tento. O maior problema, na verdade, é que minha bondade canônica é maior do que deveria.

Dou de ombros e, quando me dou conta, as vejo empilhadas na sala de estar.

Nicole. Você tem uma pedra de gelo no lugar de um coração. Chantal… você não tem coração.

Quando ia fechar a porta, percebo que quase a acertei no nariz de alguém. E, para minha surpresa, foi a pessoa que eu menos esperava ver acompanhada de meninas feito elas. Nara vem até mim, com a culpa tatuada na testa. Se ela tivesse um rabo, poderia apostar minha vida que ele estaria entre suas pernas.

Ah, Nara, você me paga.

— Lune, Luan não está por aqui?

Por sorte, isso pareceu mais importante que o olhar em brasa que eu dirigia à Nara. O encaminho para a garotinha sentada no braço do meu sofá, com as perninhas cruzadas e a saia obviamente dobrada na cintura para que as coxas aparecessem.

Eu poderia ter dito que não. Poderia ter dito qualquer coisa, que ele saiu, está no banheiro, dormindo, ou que morreu.

Mas eu virei as costas e subi as escadas.

Enquanto subia, usava o meu par de neurônios (sim, devem ser um par, só pode) para arquitetar um contra-ataque infalível. Mas, lógico, eu não conseguiria sozinha. Esbarrei em Lise, no último degrau.

Confesso, a primeira coisa que pensei foi algo do tipo: Lise sentada no sofá, conversando amigavelmente com as visitas, pois se merecem.

Mas, quando ia passar por ela, ela deu um passo, parando exatamente em minha frente. Foi aí que pude fixar meus olhos nos seus.

"Ondas", se é que me entendem.

Essa garotinha pode ter todos os defeitos do mundo. Pode ser arrogante, metidinha, orgulhosa e me odiar ao infinito. Mas tem uma característica peculiar e que me atrai demasiadamente: defende o irmão como um leão defende uma metade de zebrinha.

Não que ela tenha dito algo. Nenhuma de nós duas soltamos uma palavra sequer para fora da boca. Não foi necessário. Quando uma faísca se cruzou em nossos olhares, um pacto silencioso se selou entre nós. Sorrimos uma para outra e ela disse: "eu vou chamar".

"Maninho, tem algumas meninas lá em baixo querendo te ver".

"Meninas?".

"Sim, muito agradáveis e bonitas".

"Você vai aprontar alguma não vai? Diga que já vou descer".

É por essas e outras que digo que é importante conhecer cada membro da família.

Desci cantarolando.

— Onde está? – a mesma garota pergunta.

— A irmã dele foi chamar – respondi distraída. Ouviu-se um "aaaah, que gracinha!" geral no aposento.

Meio que senti pena de Lise quando desceu, pois a situação se agravou significativamente. Todas iniciaram um processo insuportável de bajulação: "oooh, como você é linda!", "você é a cara do seu irmão!", "que fofinha!".

Bando de interesseiras.

Mas, sabe que eu tenho a leve impressão que Lise está adorando isso. Ao contrário de mim, se ela tivesse uma submetralhadora em mãos, não fuzilaria todas elas. Não, acharia algo mais cruel.

Pensando assim, começo a ficar com medo dela.

Alguns minutos depois Luan desceu. E o cretino estava um gato.