quarta-feira, 31 de março de 2010

Capítulo 25 ~ Louca

Quando acordo, vejo que não estou na minha casa.

Ah, muito longe disso. O colchão não é tão confortável, as cobertas não são tão fofinhas e meus carneirinhos sumiram. Muito, muito menos minha roupa é igual ao meu pijama do Snoopy. Mandando a real, eu nem sequer estou usando roupa. Isso aqui mais parece um avental, eu uso isso pra lavar louça.

— Acho que este aqui está virando nosso local de encontro.

Dou um pulo tão grande que até me pergunto como esse tecido verde claro não se rasgou em várias partes. E agradeço por não ter rasgado, acho que não é uma boa apressar tanto meu relacionamento com Luan assim.

Eu devo ter feito uma expressão arregalada muito idiota, porque ele riu da minha cara. Normal, é muito gratificante quando a pessoa por quem seu coração está pulando de alegria ri de você, tipo, o tempo todo.

Certo, falando bem sério, eu acho que eu também riria de mim se, sabe como é, não fosse eu mesma. Qual é, olha só para mim.

— E desde quando esse é o meu lugar favorito no mundo? – pergunto num misto entre irritação e êxtase, entendendo finalmente onde estou. Reconheci os aparelhos esquisitos.

— Desde que me conheceu, pelo que parece, sempre acaba aqui e dá um jeito de me encontrar primeiro – ele sorri ainda mais ao ver meu olhar espantado – ei, eu estou brincando.

Baixo meus olhos tentando me lembrar de tudo o que aconteceu, mas só identifico imagens vagas.

— Luan, o que houve?

Ele pisca algumas vezes até começar a falar.

— Ué, se você não sabe, muito menos eu.

Lanço um olhar torto e ele dá risada. Novamente.

— Tá, eu não sei, seu pai ligou lá em casa para contar que estava trazendo você para o hospital porque você tinha desmaiado. Então pegamos um táxi e viemos. Ele não me contou nada, não teve muito tempo para isso, sabe, com o desespero e tudo o mais.

— E onde ele está agora? – pergunto percebendo que papai não deu nem sinal de vida desde que acordei. É, eu sei, que foi há um minuto.

— Falando com os médicos eu acho… você fez alguns exames, deve estar vendo se já saíram e todo o resto.

— Exames? – pergunto quase engasgando – Há quanto tempo estou inconsciente?

— Há mais de três horas, acho – ele olha no relógio – ah, é, é, mais de três horas.

Eu fico tão espantada que nem posso raciocinar direito. Quer dizer, mais de três horas para acordar de um desmaio? Tempo bastante para quem teve a vida toda uma saúde intocável.

— Na verdade, já fazem três horas e trinta e sete minutos – ele acrescenta pensativo – e acho que eu já deveria ter ido avisá-los que você acordou – disse, levantando-se imediatamente. Sem pensar, agarro sua mão com o desespero estampado no rosto. Para meu consolo, ele se espanta tanto que quase posso rir pela inversão de papéis. Se eu não estivesse em crise, é claro.

— Não vá… – imploro, sentindo minhas bochechas esquentarem tanto que daria para fritar alguma coisa. Engulo em seco – fica aqui.

E juro para vocês: o que ele fez em seguida vai ficar marcado eternamente na minha história de vida.

Eu desejo, do fundo do coração, que todas as garotas do universo possam um dia receber um sorriso igual a esse. Quando vejo sua expressão se formar, é como se todo o resto tivesse se apagado e só existíssemos eu e ele em todo o planeta. As sobrancelhas arqueadas de uma forma tão carinhosa, seus lábios perfeitos expandidos, formando as covinhas mais lindas que já vi e provavelmente verei em todos os dias da minha existência bizarra… parece que tudo ali tem uma sintonia perfeita, a melodia perfeita para me deixar feliz. E, depois que ele simplesmente faz meu mundo parar apenas com a expressão do seu rosto, volta a sentar, girando sua mão e segurando a minha como se fosse feita de um vidro muito frágil. Então, põe-se a acariciá-la com o polegar, formando pequenos círculos.

E é exatamente aí que não posso mais segurar a esperança no cativeiro que eu havia preparado com tanto carinho para ela. Ela vem com força total, só para acabar com minha vida. Cruel como nunca alguma jamais foi, acendendo um grande e alto luminoso em neón, com luzes coloridas, piscando:

"ELEGOSTADEVOCÊ"

Não sei quanto tempo fiquei olhando dessa forma deslumbrada para os olhos dele, mas assim que me sinto segura o suficiente para relaxar nos travesseiros e o vejo mexer os lábios provavelmente para falar algo tão bonito quanto ele, a porta do quarto se escancara e papai entra com Victoire e Lise no seu encalço.

Eu, decepcionada, quero voltar a dormir.

Eu até me pergunto o que Lise estaria fazendo aqui já que não nutre sentimentos calorosos por mim, mas prefiro ficar na minha, principalmente porque ela está usando uma roupa que nunca imaginaria nela, aí não consigo prender a atenção em outra coisa, de tão abismada que estou. Eu achava que fazia bem o tipo de blusinhas brilhantes e saias cor-de-rosa. Agora, quem imaginaria um All Star e uma jaqueta de couro? Eu não.

E o jeans dela está rasgado no joelho.

No exato momento que a família toda voltou, Luan largou minha mão como se ela fosse feita de urtiga. Depois, olhou de relance para mim e se afastou com, eu juro, as bochechas um pouco mais rosadas.

— Lune! Graças a Deus que acordou – papai diz com uma voz aliviada. Até me sinto culpada por ter ficado assim, nunca o tinha visto desse jeito. Ah, nunca tínhamos passado por isso mesmo – faz muito tempo?

— Pouco mais de 5 minutos eu acho – Luan responde com uma voz esquisita.

Tudo isso? – ele olha para o pobre sem entender – e por que não foi nos avisar?

Tenho certeza que meu pai não quis parecer irritado com ele, mas, infelizmente, foi o que pareceu. Victoire até ficou meio sem graça. Então, me sensibilizei por Luan. Quer dizer, meu pai é uma boa pessoa, de verdade, mas ele não precisava ter falado dessa forma.

Tá, tá, eu confesso, eu tomei as dores do cara porque gosto dele, e daí?

— Fui eu que pedi, papai – disse, num tom de gemido que obviamente era pura enganação – acordei e não havia ninguém aqui além dele, como esperava que eu ficasse?

Com certo prazer vi seu rosto se transformar em algo parecido com o remorso. Qual é, o cara fica aqui cuidando de mim quando todo mundo se manda, me proporciona essa visão abençoada logo quando desperto e ainda me dá o sorriso mais lindo da história para, no final, levar um coice do meu pai?

Ora, veja só. É mesmo muita injustiça. Eu jamais me calaria enquanto meu pai dá o mole de ficar chateado com ele. Era você, Papai-Desnaturado-Otto, que deveria estar na cabeceira da minha cama, chorando diante do meu leito doente, quando eu acordasse de três horas e trinta e sete minutos de desmaio.

Não que eu esteja reclamando. Só achei injusto, sabe como é.

Que culpa eu tenho? Que tipo de garota não ficaria atordoada depois do sorriso que recebi? Bom, desculpe decepcioná-los, mas sou humana. Posso não ser uma humana das mais tradicionais, mas, ainda assim, humana.

Enquanto me distraía com o ar agradecido dos olhos de Luan, meu pai me pedia mil desculpas.

Só me ferro nessa família.

— Desculpe filhinha, mas eu precisava de notícias, você nunca me deu um susto desses em anos e agora desmaia e fica horas inconsciente…

— Mas o senhor podia ter sido um pouco mais educado – eu disse, numa voz fingida de mágoa – Luan ficou aqui de toda a boa vontade. Não foi assim que me educou.

— Tem razão filhinha, tem razão – ele fazia carinho na minha mão, não parecendo estar ligando muito para o que eu estava dizendo. Parecia apenas querer se desculpar comigo para não contrariar.

Acho que eu deveria desmaiar mais vezes, papai fica muito engraçado. Tão vulnerável.

Sem aviso, uma pontada forte na cabeça me trás de volta ao mundo real e eu me lembro de tudo como num bombardeio.

— Quem me segurou? – mando de repente e um silêncio estranho e confuso paira sobre o quarto. Imediatamente, percebo que acabei de surtar de um jeito meio esquisito e que deveria ter me controlado. Mas agora já era.

— Como disse, amor? – mandou papai, sem entender muito.

— Quando eu caí. Quem me segurou? – repeti, um tanto mais sem graça.

Tremo quando vejo meu pai e Victoire se entreolharem. Luan olha de mim para eles e Lise… bom, Lise não faz nada.

— Desculpe, florzinha, mas não sei do que você está falando – diz meu pai, sem jeito.

Aí eu me afundo no colchão. Não só por ele ter me chamado de florzinha, mas… qual é, eu desmaiei e perdi um pouco os sentidos, mas antes disso eu estava bem lúcida. Certo, não tão lúcida, mas conseguia saber a diferença entre imaginação e tato. Mas, se meu pai não sabe…

— Qual é pai – digo com uma risadinha nervosa – eu não fiquei louca. Sei muito bem o que aconteceu antes de perder os sentidos, eu tinha levantado e vi algo do outro lado da cortina… então vacilei e antes de cair no chão senti alguém…

De novo o silêncio tenso.

— Eu tenho certeza – reforcei, antes que houvesse alguma dúvida.

— Sinto muito, Luninha – pude perceber claramente a voz nervosa de meu pai – mas não havia ninguém lá.

— Eu acordei com você me chamando e, quando cheguei lá, você estava caída ao lado da sua cama – acrescentou logo depois.

Bom, agora nos encontramos numa situação bastante peculiar. Seu pai e sua provável futura família pensam que você é maluca, mas há uma batalha emocionante entre a sinceridade e o bom senso. Eles têm medo de falar a verdade porque você vai pensar que estão te chamando de pirada, mas também não querem te magoar. Logo, o próximo passo é ficarem procurando motivos para provar para você e para si mesmos que você não é, sabe, uma maluca de pedra.

Com essa situação toda, preferi nem compartilhar o fato de que eu não gritei por ninguém antes de desmaiar. Até por que, eu estava mesmo me sentindo bastante louca com a história toda.

— Ah, chérie – Victoire foi a primeira – você tem certeza mesmo? Às vezes pode só ter tido a impressão…

— É! – papai – Você pode ter tido algo como um sonho, sabe, isso já aconteceu comigo, uma vez fui levantar para ir ao banheiro, mas estava com muito sono e caí, por que tinha adormecido em pé, acredite, eu sonhei que tinha realmente ido ao…

— Eu acho – Lise – que você bateu com a cabeça.

(Silêncio).

— Ou – Luan disse ao meu lado, parecendo ser o mais equilibrado de todos e claramente tentando me fazer sentir melhor – você bateu com as costas na cama e teve a impressão de ter sido alguém.

Isso! – Papai e Victoire exclamam, num coro quase perfeito.

— Ou simplesmente bateu a cabeça – Lise diz mais uma vez, infelizmente, parecendo a mais confiável de todos.

É realmente admirável os esforços deles em tentar encontrar uma solução, mesmo que não tenham me convencido. Eu tenho a nítida impressão de que alguém – alguém adulto – me segurou. Foi como uma imagem na minha mente, veio como um… ah, não sei explicar. Mas… parecia alguém gentil. E familiar.

Ah, o que eu estou dizendo, se não foram eles não pode ter sido mais ninguém.

— Lise, pare com isso – Victoire cospe na direção de Lise, com raiva – os médicos a examinaram, ela não bateu a cabeça.

— Puxa – a menina retruca, erguendo as sobrancelhas em minha direção – que pena, então ela é louca mesmo.

Afundo nos travesseiros, pesada. Estou me sentindo meio fraca ainda e só tenho vontade de me deixar embalar e embalar… e embalar…

Devo estar mesmo ensandecida.

Deito a cabeça um pouco para o lado e vou fechando os olhos devagar, ainda ouvindo meu pai e Victoire conversarem nervosos. Nada que eu realmente entenda, principalmente porque não quero. Prefiro ficar aqui, me deixando levar pelo sono. É engraçado como quando você está assim, com os olhos fechados você consegue captar coisas que não perceberia antes… quase posso ver Luan, ao meu lado, e Lise, sentada mais adiante… consigo sentir a presença deles, as mudanças na claridade, o ar… eu sempre gosto de fazer isso no jardim de casa, apenas sento e fecho os olhos. É como se o ar me contasse…

Quando tudo está escuro e penso que vou cair no sono em questão de segundos, algo quente toca minha mão.

— Lune – a voz de Luan resgata meus sentidos. Tudo bem, como é ele eu dou um desconto. Abro os olhos e, ao invés da natural expressão relaxada, encontro sobrancelhas preocupadas.

Ele havia se aproximado muito e me observava com o cenho franzido. Gentilmente, afasta os cabelos do lado do pescoço que acabei de deixar livre, coisa que faria qualquer garota surtar. Porém, como sua expressão não é boa, seguro a onda.

— O que é isso, Lune? – diz em voz baixa, tocando o lado do meu rosto para virá-lo um pouco mais. Levo minha mão até a nuca e algo úmido encontra meus dedos.

— O que… – eu afasto a mão para conseguir ver e falo assustada – é sangue?

Presumo que tenha dito isso um pouco alto demais, pois papai e Victoire pararam no mesmo instante de sussurrar às minhas custas.

— Como é, Lune? – papai se aproxima rápido, não sem antes dar uma boa olhada na situação e fazer cara feia para Luan, que me tocava com intimidade. Não tanto quanto eu gostaria, obviamente. Sinto minhas bochechas corarem.

Eu sei e você sabe. Mas meu pai não sabia que o motivo de Luan estar com a mão no meu pescoço era totalmente inocente. O pior é que nem posso culpá-lo por ter praticamente empurrado o garoto ao se aproximar, pois, ainda que com ótimas intenções, ele estava mesmo perto, debruçado em cima de uma cama que já é alta.

Sabe como é, não pude deixar de corar.

Mas quem diria que um homem feito como meu pai seria tão mal educado? Já não bastava ter falado com Luan daquela forma desagradável antes, agora se enfia na frente do garoto. Eu, mesmo sabendo que não posso culpá-lo, me enfureço ao ver o rapaz cambalear e quase cair sentado na cadeira às suas costas. Por um segundo, Luan me pareceu irritado, se não vi mal.

Eu queria poder dar uns bons cascudos no meu velho, mas na atual circunstância de amiga-apaixonada, eu não tinha esse direito. Ia dar muita bandeira.

— Você está bem filhinha? – disse o sr. Otto-sem-modos – Como fez isso?

— Não sei, ainda não tenho olhos nas costas – discutir pode não ser o melhor, mas ninguém disse que não posso ser grossa de vez em quando – se me arranjar um espelho talvez possa responder melhor.

Quando papai abriu a boca para se oferecer, eu o cortei.

— Luan, pode tentar achar algum pra mim?

Meu pai piscou em minha direção.

— Eu pego um para você, filhinha.

— Não, eu quero que ele me ajude – falei, com os olhos cerrados.

Claro, só depois pensei na possibilidade de Luan não querer ir, mas ele é educado e se levantou ágil, fazendo que sim com a cabeça e um sorriso no rosto.

Eu sou muito cara-de-pau mesmo. Papai pareceu meio frustrado, mas nem liguei.

Victoire, que estava parada no pé da cama me sorri alegre. Nem sei direito o porquê, mas ela sorria abertamente. Depois, se aproximou e olhou torto para meu pai, que imediatamente pareceu desconcertado e foi puxado para mais longe, abrindo espaço suficiente para Luan passar com o pequeno espelhinho que tirou do banheiro do quarto.

Aproximando bem, percebi o que era. Um corte fino, manchado de sangue e emoldurado por um vergão muito vermelho, de ponta à ponta da minha nuca.

Exatamente sabe onde? Sob meu colar.

Agora me lembro. Me lembro bem. Quando levantei senti o peso vindo da jóia e não era, óbvio, um peso comum. Tinha algo a mais nele, algo que – pelo visto – me machucou.

Hoho.

Coisa completamente normal. O que há com você? Vai me dizer que nunca aconteceu de um colar assumir o peso de um bloco de concreto de uma hora para outra? É claro que já, acontece o tempo todo com todo mundo. Porque eu sou completamente normal.

Quer saber, ainda bem que já estou no hospital, assim só me resta levantar daqui e descobrir qual é a área de psiquiatria.

É, belo exame, profissionais do hospital – sussurrei, admirada por médicos e enfermeiras não terem visto um corte daquele tamanho.

Isso acontece só para me perturbar, só pode. Por que tudo acontece em torno desse cristal?

Qual é, contos de fadas não existem, isso não é real. Primeiro eram os choques, as ondas de calor… depois ficou pesadinho, mas algo que ainda dava para duvidar… eu já tinha aceitado que não passava de mera impressão minha. Mas nessa situação é impossível, loucura, duvidar. Chegou a me machucar. Fez ferida. Claro, o sangue já coagulou, depois de tanto esse tempo, mas… não se pode questionar: meu colar é um mutante sem propósito.

Eu detesto admitir, mas estou com medo.

Tá, eu sei, sou medrosa, não tenho por que detestar admitir.

Será que…? Não.

Não, isso é uma idéia ainda mais absurda, Nara não poderia ter razão.

O.k., piração, qual é Lune, acorda. Você não pode estar pensando…

Sinto minhas mãos tremerem com o receio. Agora entendo como deve ser para minha amiga, tão cética, manter depois de anos a mesma opinião a meu respeito. É como uma guerra, só que dentro da sua cabeça. Tudo aquilo que você sempre pensou ser a verdade se confunde com tudo aquilo que você sempre pensou não existir e, num momento, você percebe que a verdade sempre foi o que não existia. As pessoas que você sempre julgou serem sonhadoras e criativas, de repente, são sábias.

Acho que é mais ou menos nesse ponto que você descobre que, na verdade, não sabe nada, não é? Você se pergunta: quem sou eu no meio de tudo isso? Então, percebe que não passa de uma criança presunçosa, que pensava ter razão sobre tudo. E o pior, é que ainda se nega a acreditar!

Assim como eu, procurando uma saída qualquer além da explicação mais óbvia. Assim como Nara demorou anos até criar coragem para me confessar realmente o que achava sobre mim. E eu ri dela, sem nem pensar no quanto isso a magoaria. Não me importei em saber o quanto ela sofreu antes de me contar. Não quis saber o quanto ela mesma já tinha se repreendido por pensar aquilo. Ri, como se ela fosse louca.

E agora estou aqui, anos depois, passando pelo mesmo.

Minha cabeça gira tanto que, pela primeira vez em anos, sinto vontade de arrancar essa jóia do pescoço. Se ainda não a arranquei, é apenas por causa da lembrança que tenho da minha avó.

Minha avó.

Ela não era uma pessoa comum. E, mesmo tendo tanta certeza de tudo que falava, tenho a impressão nítida de que, se alguém a confrontasse algum dia sobre seus pensamentos, ela nada mais faria do que considerar a opinião alheia e tentar acreditar nela. Porque ela sim não seria cética. Ela sim não era presunçosa. Sabia que não era dona da verdade, como as outras pessoas teimam em crer que são. Se ela estivesse comigo quando, anos atrás, ri da opinião de Nara, teria me repreendido.

Ah, sim. Minha avó não era como as outras pessoas.

Era uma velhinha muito interessante, ela. Me sinto mal em pensar que nem ao menos conheço seu nome. Lembro daquele cabelo comprido e prateado, os olhos bondosos, sempre lacrimosos… as mãos carinhosas. Lembro das comidas que fazia… mesmo sem ter a mínima idéia de como eram. Até hoje, nunca consegui encontrar pratos tão deliciosos quanto os que ela fazia, no velho fogãozinho à lenha.

Lembro da casinha, simples e pobre, no meio da clareira de um bosque. O Sol batia na minha janela, muito cedo, e eu logo corria descalça sobre as folhas caídas das árvores, ainda molhadas pelo orvalho. Lembro das borboletas, voando em minha volta como se realmente brincassem comigo… elas realmente brilhavam, não brilhavam?

Definitivamente, acho que sim.

Me recordo de tantas outras coisas… é estranho que não consiga me lembrar aonde era. Tantas conversas, tantos conselhos… tardes de dança e música com aquela pessoa tão amável.

E não sei como encontrá-la.

Sinto saudades.

Refletindo sobre as maneiras, aparência, lembranças que tenho de minha avó, admito que era uma criatura realmente peculiar e lhe cairia muito bem o papel de boa velhinha, aquelas que aparecem em contos de fadas. Mas há uma grande diferença entre o parecer e o ser. Duvido muito que minha avó saísse por aí cantando Bibidi-bobidi-boo.

Por exemplo, nossa vizinha, a Sra. Miralle: é uma francesa meio perturbada que mora sozinha com seu monstruoso Rottweiler – um cachorro que se quisesse quebrava todos seus ossinhos em uma bocada só. Ele é o Roget. É assustador, mesmo que para mim nunca tenha feito nada, acho que porque sabe que no fundo gosto dele. Várias vezes já entrei sorrateiramente no quintal da Sra. Miralle apenas para lhe dar água fresca. Não porque ela seja uma dona ruim, ela é estranha, seus filhos lhe deram o cachorro para cuidar da casa, pois ela não faz. Tá, tá, a questão é: a velha é meio maluca. Nunca sai de casa a menos que seja para pendurar a roupa, regar suas plantas e de vez em quando pôr comida para o coitado do Roget, que sempre está preso. Sai fumaça daquela chaminé incessantemente e ela nunca abre as cortinas.

Ela tem tudo para ser uma ótima candidata à bruxa. Mesmo assim, acho apenas que ficou meio caduca quando enviuvou do velho Heitor. Tenho pena dela, por ser tão sozinha e muitas vezes já fui regar as plantinhas que ficam para fora da sua cerca, sabe como é, para ajudar.

Mas, não. Apesar de toda a estranheza sinistra da Sra. Miralle, quem parece mais apta a ser eleita como bruxa, fada, elfa, feiticeira, qualquer coisa não-humana, além de mim, é minha avó.

E eu nem a conheço o suficiente para dizer que ela não é tudo isso. Apenas rezo para que ainda esteja viva.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Capítulo 23 ~ Mal-Estar

Ninguém se atreveu a abrir a boca diante do Luan que acabei de conhecer.

Claro, depois disso tudo, minha vida estava mais comentada do que se estivesse num reality show. Ouvi de tudo que você pode imaginar. Ouvi dizer que meu pai vai se casar com a mãe dele porque estamos ficando sem dinheiro. Ouvi dizer que Luan estava: ou tentando aparecer, ou apaixonado loucamente por mim, ou ambas as hipóteses. Pior de tudo, algumas pessoas juram ter visto trocas de olhares comprometedoras minhas com Luan e têm certeza absoluta do romance – sigiloso, de acordo com certas fontes, por causa da religião dos nossos pais que desaprovam o relacionamento. Fora todos os comentários de que eu, Phil e Luan, somos um grande triângulo amoroso.

Acho que nunca me senti tão popular.

O engraçado é que ninguém comenta a história real: meu pai e Victoire se apaixonaram, formaremos uma família feliz e Phil é doente.

O pior é que não é brincadeira. Verdadeiramente acho que esse cara tem alguma energia anormal, uma "força" macabra que o impede de deixar minha vida em paz. Eu garanto, ou é problema de verdade, ou é crise de identidade, ou ele simplesmente cheira alguma coisa.

Quer dizer, não foi culpa minha, tenho a consciência tranqüila. Meu pai decide sobre a vida dele (infelizmente), é adulto, tem casa própria, sabe dirigir e paga minhas contas. Nada mais justo do que eu permitir que ele siga sua própria vida e deixe que se apaixone. Eu não consigo nem cuidar da minha direito. Alguém pôr a culpa dessa situação toda sobre mim é inaceitável.

E foi Luan quem disse!

Quando saímos do pátio, fiquei meio sem saber para onde ir, então só guiei a manada para qualquer lugar. Por fim, acabamos parando perto das salas do primário, encostados na cerca do parquinho. Nara parou ao meu lado, com a mão no queixo, pensativa. Luan pendurou-se na grade, parecendo querer incendiar os balanços das pobres criançinhas inocentes. E eu, confortavelmente, apoiei minhas costas e fiquei admirando tudo, com uma certa expectativa no rosto. Nara, ainda não aceitando a situação, foi a primeira a confirmar meus palpites, procurando explicações lógicas para tudo, articulando possibilidades. Eu, por minha vez, já tinha aceitado que o cara é maluco, só isso. Não seria a primeira vez que encontro caras problemáticos, qual é a novidade? Para mim, Phil é apenas mais um insano que nasceu para me perturbar.

— Não é possível. Ele deve saber de alguma coisa mais. Deve ter algum motivo para acreditar que Lune é responsável por algo.

— Motivo para acreditar? Motivo? Me diga, Nara, o que levaria qualquer pessoa normal a jogar a culpa disso em Lune se simplesmente não há culpa?

— Bom, não sei… alguém pode ter dito que foi Lune que uniu seus pais, por exemplo, não dá pra saber, só…

— E Lune é DEUS? – Luan falou com um sarcasmo ardido que fez Nara, a pessoa que conheço mais fascinada por discussões, arregalar os olhos.

Anh… oi? – arrisquei uma pequena tentativa.

— Ela agora ORDENA que pessoas se apaixonem umas pelas outras?

Não deu.

— Bom, ela poderia ser…

— Ah! Já sei! Lune é o próprio Cupido encarnado, que tem o poder de obrigar a raça humana a se apaixonar, que acha? – a ironia de Luan alfinetava cada centímetro da corajosa oponente – que tipo de lunático acreditaria nisso?

Mais uma vez, ela se calou, dessa vez ficando com as bochechas coradas.

E eu sei o porquê. Sei exatamente o que ela estava pensando e também sei o quanto ela se envergonha disso. Ela me olhou pelo canto dos olhos e eu acenei levemente com a cabeça, sinalizando um "não".

Entendi perfeitamente a pergunta feita pelo olhar dela, por mais óbvia que fosse a resposta. É claro que eu não tive nada a ver com o sentimento de Victoire pelo papai, mas sei que as especulações de minha amiga sobre mim ultrapassam o limite do racional, então, simplesmente respondi. Não quero mais discussão do que já temos, além disso, ela está confusa, coitada. Nunca perdeu uma discussão antes e tem uma melhor amiga bruxa. O fardo não é para qualquer um.

Mas ainda não tinha, realmente, me concentrado na discussão. Até agora estava só olhando para Luan, notando como ele está maravilhoso, mesmo com a cabeça explodindo de raiva. Ah, é que ver como os caras ficam furiosos quando alguém se mete com alguma garota já é algo bem atraente de se observar, mas quando você (no caso, eu) é a garota em questão, acreditem, é bem melhor. Não sei o que acontece comigo, mas ser a única a ver essa criatura agarrada na grade, olhando para o chão e bufando é muito, muito legal mesmo. Mesmo que a coisa legal seja alguém perdendo a cabeça de ódio.

Eu sei, a vida é um paradoxo muito grande às vezes.

…O.k., o.k.! Nara também está vendo. Sermos as únicas a ver essa criatura agarrada na grade, olhando para o chão e bufando é muito, muito legal mesmo.

Ah, viram? Não fica a mesma coisa.

— O cara é um completo idiota, então, tudo certo? – ele termina, com um sorrisinho cruel. Eu sei que está sendo muito… "arisco", mas acho que essa não é a verdadeira intenção dele. Acho que deve ter só perdido a cabeça. Como eu não sou exatamente uma pessoa calma e racional – calma talvez, racional dificilmente – não sei muito bem como é para ele ficar irritado assim. Mas, pelo que eu percebi, não se deixar levar pela ira constantemente causa algum tipo de acúmulo de emoções que, quando sai uma, todas vão atrás. O problema é que: quem atura somos nós.

Os olhos de Nara, mesmo com todo o esforço da dona, começam a ficar um pouco mais brilhantes. Conheço minha amiga e ela sabe que a fúria de Luan não se dirige exatamente à sua pessoa. Porém, também sei que Nara não consegue suportar grosserias, ainda mais injustamente. Por isso, pude adivinhar que seus olhos mais cedo ou mais tarde ficariam mais brilhantes e, de fato, ficaram. Não é culpa dela, apenas acontece.

Mesmo me deliciando em ver suas bochechinhas vermelhas, talvez seja a hora de Luan voltar a ser o cara de antes.

— Luan – digo mansa e com cuidado. Ele gira a cabeça para mim como se tivesse esquecido da minha presença ali. Meio assustado, corre os olhos por nós duas. Nara disfarça, olhando rápido para o chão, porém, ele parece notar seus olhos lacrimosos e assume alguma expressão arrependida.

— Obrigada pelo que fez hoje… – volto a falar com um sorriso, para quebrar o clima negativo – mas que tal esquecer isso tudo?

Luan me encara por alguns instantes e, como se seus braços pesassem uns 53 quilos, solta a grade e se vira, encostando-se nela. Com muito cuidado – e tomada por uma coragem que temo não voltar por uns 15 anos – ergo minha mão e a apoio no alto de seu braço, tentando confortá-lo.

Por um segundo, pensei que Luan fosse me chutar, arremessar ou algo do gênero. Mas, depois, foi como se o mundo todo se iluminasse e sorrisse para mim, tipo uma menininha, ao ganhar o presente mais desejado no aniversário.

Ele suspirou, me olhou bem nos olhos e, subindo sua mão até a minha, envolveu a ponta dos dedos nos meus, de uma forma totalmente encantadora.

E é isso, não adianta fugir de nós mesmos. Quando a vida te prepara coisas interessantes e sua avó meio maluca ainda as prediz, é porque vai ser assim, não importa o quanto você fuja e resista. Pelo menos, quando se trata de coração, é como funciona.

Desde que o vi entrar naquela sala, desde que me senti formigar da cabeça aos pés, desde que levei choques por sua causa de um colar dotado de vida própria, eu deveria ter aceitado de uma vez o que se passava pela minha cabeça. O que eu sentia era a realidade pura e verdadeira.

E agora cansei.

O.k., admito.

Não sei o que se passa pela cabeça dele, muito menos se é recíproco. Mas o fato é que, pela primeira vez na minha vida, acho que estou gostando de alguém.

Isso mesmo.

Eu, Lune Noire, estou apaixonada.

Tudo bem, "apaixonada" é uma palavra forte, não tenho certeza de que isso não passa de uma atração porque o cara é lindo, fantástico, misterioso, gostoso (com o perdão da palavra) e… muito mais. Na verdade, acho que a gente nunca tem certeza.

Claro que, como toda garotinha crente de ter encontrado seu príncipe – sem saber se o tal príncipe acredita ter encontrado uma princesa – não consegui me livrar da praga que acompanha todo o amor platônico: a tal da esperança.

A esperança é o tipo de sentimento que não deveria vir acompanhada do amor não correspondido. Existe maior desgraça? Por culpa dela, as garotinhas encantadas ficam criando relações sentimentais para tudo que um cara faz em respeito a elas. Se a vítima empresta uma borracha: está apaixonado. Se a vítima oferece uma carona: está tentando ficar perto. Se a vítima olha: estava admirando.

Ah, que inferno!

Por causa dela, a esperança, menininhas tomadas pela paixão se declaram para o carinha de quem estão a fim e, muitas vezes, levam um pé na bunda. Por causa dela, me pego pensando se Luan não estaria tornando meus sentimentos recém descobertos recíprocos, ao retribuir meu afago.

Sempre, em toda minha vida, senti pena das colegas que assistia, eventualmente, se deixarem levar nas asas da esperança e acabarem com a cara amassada num poste do amor. Me preparei, criei teorias, meditei e me auto-protegi deste mal incontrolável da mente apaixonada.
E agora, cá estou eu.

Claro, minha atitude imediata foi me desvencilhar desse pensamento. Não, muito obrigado, não quero dar ouvidos à esperança e acabar de cara no chão mais tarde.

Não, com Lune Noire será diferente!

Por isso não me iludi quando, no segundo que nossos olhares se encontraram, eu achei verdadeiramente sentir (achar verdadeiramente, isso faz sentido?) que era um sentimento mútuo. Pelo menos, eu tentei não me iludir.

Não há como explicar por que estou dizendo isso, mas foi como se eu estivesse dentro da cabeça dele, dentro dos seus olhos, ouvindo eles me contarem tudo, me contarem que era real. Dentro da minha cabeça, seus olhos me pegavam no colo e me faziam acreditar que enquanto estivessem ali, eu poderia esquecer de mim.

E isso me deixou feliz.

E, com a felicidade, veio aquele calorzinho acolhedor, que subia pelo braço até o centro do peito, então, espelhando-se nos meus olhos, em forma de lágrimas. Ou quase lágrimas, pois não choro e não tenho certeza se apenas ter água nos olhos pode ser definido como lágrima.

Estranho, não?

Acredito mal estar conseguindo descrever como é esse sentir. Só posso afirmar… que não é o tipo de coisa que acontece com todo mundo. Porque, de certa forma, eu sinto isso. Um sentimento de tanto apreço e tanto prazer que tenho medo de não poder aproveitá-lo para sempre. E, seja pessimismo ou temor, algo me incomoda. Nele. No sentimento. Em alguma coisa… algum tipo de peso que não me deixa estar tão feliz quanto acredito que seria o comum estar.

Eu quero estar. Eu quero viver isso, sempre.

Não está entendendo nada? É, pelo menos agora sabe como eu me sinto.

Ah, e por favor, se alguém aí já tiver se apaixonado de verdade, dá pra escrever uma carta dizendo se isso é previsto? Sabe como é, tem gente (eu) que vive tanto tempo num mundo surreal que, quando precisa, não sabe identificar uma situação "comum".

Ah, ajuda dizer se a veia dramática vem junto.

Bom, sendo paixão ou não, o importante é que me rendi e não tenho mais vergonha de admitir que minha vontade, agora, é ver ele se virar e me dar um abraço. Um abraço apertado, daqueles aconchegantes, em que seus braços envolvem minha cintura e me apertam forte.

Porém, como não se pode ter tudo na vida, eu fico feliz com seus dedos juntinhos dos meus assim. Já está de bom tamanho.

Caramba, quero chorar.

Não deveria ter gritado com Phil, afinal, ele disse a verdade. Eu estou caída por Luan. E, não havia notado isso antes, mas o fato de nós morarmos juntos realmente complica as coisas, na atual circunstância. Nós vamos morar sob o mesmo teto, mais cedo ou mais tarde, e o que vai ser da minha vida? Tudo bem, vamos esquecer da maldita incerteza por enquanto, vamos supor que eu não me esqueça dessa droga de paixão por um bom tempo. Nossos pais se casam e vamos morar na mesma casa, dividindo corredores, cozinha, e o pior, o aparelho de som.

Se esse sentimento não for correspondido, meu Deus, como vai ser quando ele arranjar uma namorada? O que vou fazer? Não, imaginem só: ele chegando em casa, apresentando a todos sua pretendente e sua pseudo-irmã estaria ali, sentada, assistindo e desejando mais do que tudo estar no lugar dela, sendo obrigada a viver com uma constante e bonita dor-de-cotovelo.

Ah, não. E o pior não é isso, vem agora: COMO vou ficar se ele arranjar uma que seja meiga, pequena, delicada, tenha olhos azuis e lindos cachos cor chocolate? Ela vai se sentar à nossa mesa, desdobrar o nosso guardanapo, colocar no colo e vai fazer uma oração, mais bonita, muito mais bonita do que qualquer uma minha, agradecendo a Deus pela sua vida maravilhosa, pelo seu namorado maravilhoso e pela maravilhosa família dele. Ela vai querer ser minha amiga e eu vou gostar dela porque ela será perfeita e querida demais. Vai me convidar para ser madrinha do casamento deles.

Oh, isso sim seria um belo de um pesadelo, não?

Ponha-se no meu lugar, você também não gostaria de morrer? Tudo bem, morrer é demais, também acho. Quem sabe entrar em coma. Alcoólico.

Bom, não é tão desesperador assim, eu posso me juntar à irmãzinha dele e o espiar sem camisa no quarto.

Chegando em casa, já estava mais do que decidido que o plano seria: alimentar os animais e cair na cama. Despeço-me dos meus coelhinhos, vendo suas carinhas tristes por causa da falta de atenção do dia, e subo para meu quarto, desejando mais do que tudo uma cama. Todas as descobertas e acontecimentos do dia giravam dentro da minha cabeça e a única forma que via de fugir disso era pegando no sono – apesar de que, com minha sorte, muito provavelmente acabaria sonhando com Luan.

Apago a luz e, sem nem tirar o uniforme, entro em baixo do lençol lilás e admiro por alguns minutos os carneirinhos do papel de parede sob a luz amarelinha do fim do dia. Literalmente, contando carneirinhos.

Não sei quanto tempo depois, pois acredito ter cochilado, ouço a porta da frente se abrir e passos subindo as escadas, seguido por alguém entrando no quarto. Mal me dou ao trabalho de subir as pálpebras, apenas vislumbro o borrão que se tornou meu pai, segurando alguma coisa que não consegui e nem tentei descobrir o que era. Ele falou algo, mas não prestei atenção, já estava novamente sendo vencida pela vontade de dormir. Ainda consegui assistir ele depositar os embrulhos sobre a penteadeira e escutar uma pergunta, mesmo não entendendo seu significado. Grunhi um som de consentimento qualquer e nem o esperei fechar a porta, apenas me deixei embalar e embalar… e embalar…

Acordo horas depois, com frio. Sentindo o vento da porta da sacada aberta, me xingo mentalmente por tê-la esquecido assim. Estranho, nunca esqueço de fechar.

Grogue, abro os olhos lentamente, um mais do que o outro, e alguma coisa está diferente. É como se alguém tivesse jogado vários sacos de glitter por todo o quarto, sensação parecida com a de quando vi Luan pela primeira vez. Tudo está brilhando, o ar, os móveis, o teto e até eu mesma. Penso se não estou com algum problema na retina e, não sei se faço bem ou mal, sento na cama. Então, sinto tudo girar e minha cabeça lateja loucamente enquanto, mais uma vez, tento enxergar alguma coisa, porém, minha visão falha, como se estivesse indo e voltando, e sinto dor ao direcionar o olhar para um grande brilho perto da sacada.

Vencida, decido fechar os olhos definitivamente. Tendo agora apenas os outros sentidos, tento me levantar e caminhar até a porta, mas quando o faço, tudo piora. Sinto como se toda energia fosse sugada do meu corpo, meus braços parecem ter carregado uma carroça por quilômetros e estão tão sem vida quanto minhas pernas. Simultaneamente, meu colar assume um peso assombroso e uma dor fina corta minha nuca de ponta à ponta, o que me faz ficar meio inconsciente. A impressão que tenho é a de que minha cabeça está desconectada de todas as outras partes do corpo e qualquer movimento que faço é pura sorte.

Procuro a mesinha ao lado da cama para tentar acender o abajur, mas não consigo saber onde nenhum deles está e, sabe-se lá com que estímulo, impulsiono meu tronco para frente, na esperança de conseguir me segurar nas cortinas. Porém, elas fogem dos meus dedos e acabo, sem querer, com o ombro direito colado no vidro da porta.

Possuída por um mal-estar nauseante e um desespero nada mais do que justificável, mais uma vez, abro os olhos. Então eu surto ao ver através do pedaço de cortina preso pelo meu corpo a sombra de um animal enorme.

Eu amo os animais. Eles me fazem bem e me sinto feliz ao lado deles. Mas ao assistir aquele cão gigantesco, dando seus passos pesados e lentos em direção à entrada da sacada, eu não senti nada mais do que medo. Medo de morrer.

Entro em um choque de horror e não tenho chance nem de pensar. Só o que consigo notar – além dos latidos alucinados de Roget, o Rottweiler da vizinha – é meus joelhos vacilando, a visão sendo sugada e a sensação de cair nos braços de alguém.

Depois disso, mais nada.

terça-feira, 9 de março de 2010

Capítulo 21 ~ Segredos

— Lune Noire, como se atreve a fazer isso comigo?

Parece estranho, mas eu realmente esperava que, depois de um dia tão cheio ontem, o de hoje poderia ser um daqueles discorridos normalmente, sem adrenalina. É, comum, para variar. Um absurdo, eu sei, mas sou uma ingênua irreparável.

Sonhei em chegar na escola e, calmamente, dentro do meu direito de privacidade, contar à Nara sobre o dia anterior. Só a ela.

Como é que dizem? Notícia ruim corre rápido.

Oh, não, não. Não ruim para mim, não é a isso que me refiro. Me refiro a elas, essas garotas todas circulando por aqui, me olhando de maneira macabra. Posso ver as marcas negras em volta dos seus olhos, maldade pura. Instintos assassinos.

Será possível que não posso nem respirar? Ou também roubaram todo o oxigênio do planeta? Passo a correr risco de vida da noite para o dia e nem me avisam?

— Você deveria ter me contado imediatamente de tudo! Deveria ter me ligado assim que enfiaram o nariz para dentro da sua casa!

Nem Nara, que se autodenomina minha melhor amiga (desconsiderem que também a denomino assim, estamos tentando denegrir sua imagem) pôde me dar um segundo de sossego.

Não… sossego para Lune? Para quê? Ela não precisa disso.

Mas prefiro ir para uma parte do relato mais interessante, não quero me estender sobre o sermão/desabafo de Nara. O legal mesmo é que: depois do sermão/desabafo que acaba de ser ignorado, sua autora me avisa que: todo mundo (ou melhor, toda a população feminina do colégio acima de 11 anos) está falando de mim como nunca na vida. Afinal, é uma novidade incrível: eu, Lune, praticamente a menos interessada em garotos da escola, começa a se envolver com um.

O que é mentira, porque eu não estou envolvida com ninguém.

Não por falta de vontade. Mas elas não sabem disso.

Eu não sei o que você acha, mas não é uma ótima maneira de começar o dia?

Ao que parece, Fantine – uma das melhores amigas de Nicole e, também, a maior fofoqueira que provavelmente conhecerei em minha vida – mora perto da casa onde Luan está morando. Ela anda passeando muito com seu Pinscher pela redondeza ultimamente e justamente na hora que meu pai querido foi buscar a família Chermont, ela estava esticando as pernas do cãozinho. Ali.

Bem, aí vocês já sabem, provavelmente a homicida ligou um fato ao outro e telefonou para todo mundo que conhecia para contar a novidade. "Ah, Lune está se achando, como a garota poderia tirar uma conclusão dessas?", vocês perguntam. Eu respondo: a) ela é aliada do partido que acha que eu sou filha do Diabo; b) segundo relatos, ela viu papai e sua noiva beijarem-se rapidamente antes de entrarem no carro, então, não tirou tantas conclusões brilhantes assim; e c) ela conhece meu pai, o viu ano passado quando ele veio bater um papo amigável com a diretora porque um menino tinha tentado me dar um beijo e eu bati a cabeça dele num projetor de imagem.

Qual é, tudo bem que sangrou um pouco, mas foi reflexo, não tive tempo de pensar. Autodefesa.

E isso são águas passadas.

Até gente que nunca se importou muito com minha existência ficou me olhando estranho na aula. Sem motivo nenhum, se quer saber minha opinião, eu não tenho culpa se meu pai sabe escolher as famílias com quem se envolve. Não sou eu que estou com o cara, é meu pai que está com a mãe dele, não posso mudar isso, felizmente.

Infelizmente, quero dizer.

Mas, no fim das contas, o pior mesmo da história não são os olhares psicopatas das garotas de todo o colégio Papai Noel. O pior mesmo foi o que o animal chamado Phillip fez. Sério, eu sei, é cruel, mas o cara parece que não pensa! Eu não faço idéia do que isso faz no planeta terra, por mim ele deveria estar, sei lá, virando bacon em Mercúrio.

Eu, que já estava bem enrolada, obviamente não precisava de mais um show no meio da escola para piorar. Na verdade, comigo as coisas pioram sem eu precisar fazer nada, mas já que Phil é uma alma gentil e altruísta, ele quis ajudar. E fez isso vindo berrar em pleno intervalo falsas acusações contra minha santíssima imagem. E isso acarretou uma série de comentários, que acarretaram uma defesa espetacular e a defesa espetacular acarretou vários outros comentários. Ou seja, meu dia virou uma bosta.

Calma, eu explico.

Eu estava saindo da sala, sabe, só saindo da sala. Caminhando tranqüilamente, pensando em como o dia estava lindo e perfumado, acabei sendo – junto com Nara e, como vi posteriormente, Phil – uma das últimas a me retirar do recinto. Até aí estava tudo bem, não há nenhum problema nisso. A encrenca mesmo teve início quando Phil surgiu ameaçadoramente sabe Deus de onde e bateu a porta com força, fechando nós três lá. Foi quando ele começou a… a… vomitar palavras na minha cara.

A intenção dele, acho, até foi boa, tentando improvisar um lugar reservado para dar o escândalo. Porém, todas as janelas, além de serem de vidro, estavam escancaradas e isso não ajudou muito a abafar o som. O pior é que, como a sala estava vazia, fazia um certo eco quando ele gritava.

— Qual vai ser? – ele "dizia" – Você vai ser irmã desse cara e o que vai ser amanhã? Acha que não sei que está pulando de alegria com isso?

Ele falava dúzias de coisas. É sério, sem parar.

E se estivesse, irmão, e daí, e daí?! – minha consciência dizia. Mas, como sou uma porcaria de boa menina, continuava em silêncio, pensando o quanto meu nome deveria ser escrito no cânon. "Canonizem Lune!" eles ainda hão de clamar.

Percebia Nara me olhando assustada, mas eu mantinha meus olhos cravados nos dele. Meu maior esforço era tentar não prender minha atenção ao que Phil descontroladamente fazia passar pela boca, mas sim olhar para sua face insana enquanto respirava e esvaziava a mente.

Acabei, sem querer, notando que Phil é um cara de físico realmente decente. Sabe aquela aparência tipo inglês sacana, que a gente encontra numa rua perto de um pub qualquer, com um cigarro na boca, olhos cerrados e cabelo jogado? Então, tipo isso. Não que Phil realmente fume, beba ou seja um canalha, estou falando apenas do estilo. Tem muita mulher por aí que se desdobraria por um cara assim, com ar de cafajeste, ainda mais ele não sendo realmente um. Ou não totalmente.

Mas, bem, eu tenho que admitir que, apesar de todos os defeitos, ele poderia ganhar muita coisa com esses olhos verdes, é só tirar esse ar obcecado de cima. O cabelo dele lembra aqueles cortes tigelas, que as mães geralmente fazem quando tem preguiça de levar o filho num profissional. É, eu sei, aquilo é brega, mas eu disse que lembra, apenas. Acreditem em mim, ficou muito bom mesmo. Me lembra um pouco Paul McCartney nos tempos de ouro dos Beatles.

Quase ri com isso.

Será que esse cara não vai calar a boca?

— … eu não acredito, simplesmente não posso acreditar que você vai deixar isso acontecer bem em baixo do seu nariz… – continua, incansável. Essa situação já está começando a dar no saco, juro por Deus. Exausta, me dou por vencida e apoio minha cabeça no ombro de Nara, fechando os olhos. A expressão de desprezo no meu rosto está bem visível e juro que se tivesse uma lixa de unha a estaria usando. Sabe como é, dá um efeito muito legal de: “mimimi, nem te ouço”.

Então, me surpreendo quando meu eficiente suporte sai de meu alcance. Vejo Nara passar apressada pela porta e virar à esquerda, mas a perco de vista, graças a todos os curiosos próximos da sala que olham descaradamente ou fingem não olhar. Momentaneamente sinto raiva deles, mas não posso culpá-los. Também estaria olhando se não fosse comigo.

Ótimo, estou levando bronca, passando por macaco de circo, quinze vezes mais mal-humorada e, agora, sozinha (tirando as dezenas de pessoas em volta, mas esqueça delas). Grande amiga Nara, grande. Batam palmas para você.

Mais alguns minutos correm e é quando começo a pensar em quantos adjetivos não-legais posso achar para Phil por ordem alfabética que ele diz algo imperdoável:

— Vocês vão morar juntos! Sabe o que é isso? Por mais que você esteja caída por ele, isso é demais!

Então, juro para vocês, mesmo que eu tivesse visto Nara se aproximar com Luan ao seu calço, eu teria dito o que disse e feito o que fiz. Sério.

Qual é a dele? Ele disse que eu estou caída por Luan? Que se dane se estou mesmo ou não, ele não sabe disso!

— Você é doente? – perguntei com raiva.

Apesar da frase pequena (infelizmente foi só o que saiu por hora) o efeito foi muito bom. Phil, que obviamente não esperava pela manifestação, calou-se por alguns instantes. Foi lindo ver a cara de idiota que ele ganhou, mesmo por pouco tempo. Foi mais ou menos nessa hora que vi Luan se aproximar. Os cochichos cessaram e ele – meu príncipe super pegável – abriu sua boca para falar alguma coisa, porém, foi interrompido pela fúria acumulada de Phil, que decidiu explodir no pior momento possível.

— VOCÊ É QUEM É! – berrou, descontrolado, encarando meus olhos com fúria. Até pude perceber babinhas pulando de sua boca.

O meu primeiro impulso foi gritar novamente, mas toda essa vontade morreu assim que vi a expressão no rosto do Luan atrás dele.

Quando em minha vida eu poderia imaginar que um cara tão lindo e calmo quanto Luan, poderia se tornar tão ameaçador? Ao me deparar com seu rosto fitando a nuca de Phil como se a quisesse fazer pegar fogo, cheguei a me sentir diminuir alguns centímetros. Toda minha impaciência foi substituída pelo instinto concreto de que eu deveria calar a boca. É sério, fiquei até meio paralisada, tipo isso.

Mas me recuperei logo, não se preocupem.

Bom, voltando à narrativa: foi tão divertido!

— E quem é você pra falar da vida dela? – Luan disse, agarrando a camisa de Phil e com a voz parecendo terrivelmente perigosa, principalmente em conjunto com o cenho franzido. Phil arregalou os olhos com a surpresa e tentou se manter em pé enquanto Luan avançava alguns passos para frente. Acredito que seja difícil manter o equilíbrio quando tem alguém com uma expressão homicida segurando sua camisa e fazendo você andar de costas.

Eles se encararam por algum tempo e assim que Phil se recuperou do susto, engoliu em seco, fez aquela cara de "mamãe, ele está brigando comigo" e mandou:

— E quem é você pra encostar essas mãos sujas em mim?

— O mesmo cara que pode fazer você engoli-las.

— Eu não como porcaria.

A temperatura da sala pareceu cair para -35. Ouviu-se um "uhhh" do lado de fora da janela e eu ergui as sobrancelhas. Bom, o quê mais poderia fazer? Ele é maluco.

Olhei para Nara e tive uma inoportuna vontade de rir. Ela abriu a boca de um jeito muito engraçado. Ah, cala a boca Lune, presta a atenção na briga.

Vocês me desculpem sabe, é que estou feliz porque não estou mais envolvida.

Primeiramente, pareceu que Luan não sabia o que responder, pois ficou em silêncio. Mas depois percebi que ele estava sorrindo. Mas não era um sorriso normal. Era aquele sorriso meio de lado, com os olhos pegando fogo, aquele tipo de sorriso que a gente vê só nos vilões maus e lindamente inteligentes dos filmes da TV. Ele sorriu, endireitou o corpo, mas manteve a mão firmemente presa na camisa de Phil. Aí ele virou pra mim.

— Lune, venha aqui.

— O quê? Eu? – falei com uma vozinha aguda, arregalando ainda mais os olhos.

— Venha aqui.

Se fosse em outras eras, eu teria perguntado quem ele era para mandar em mim. Mas na atual circunstância, o melhor que fiz foi obedecer. Parei a cerca de um metro e meio de distância deles.

— Mais perto.

Oh, grandessíssima merda.

Dei mais um passo e meio.

(Existe meio passo?).

Então, Luan fez um movimento brusco e forçou a nuca de Phil para baixo. Ele bem que tentou escapar, mas estava muito próximo da parede e, ao ir para trás, não teve para onde fugir. Tentou dar cotoveladas em Luan com o braço direito, mas Luan o segurou firme.

— Peça desculpas – Luan disse com simplicidade. A voz dele estava calma, seca, e o ar superior era bem visível.

Luan é forte, mas não é o Senhor Incrível. Acredito que se ele e Phil estivessem em um estado diferente, a luta seria muito justa. Acontece que, como Phil é infinitamente mais burro, deixou a situação chegar num ponto que ele não tem como se mover direito. Aí… fazer o que, se ferrou.

Só que, caramba, eu tava tão bem no meu cantinho.

— Luan, não… – grunhi.

— Vamos! – ele forçou ainda mais o pobre e otário Phil para o chão.

— Ah, o.k., o.k., desculpa! – Phil, por fim, ainda que de má vontade, acatou a ordem de Luan. Acho que não por que quisesse, mas sim porque viu que não tinha outra saída.

Que perdedor.

Assim que as palavras foram soltas, Luan o largou imediatamente. Calmamente, foi saindo de perto, porém, logo que virou de costas, Phil – agora não mais o cheira-nucas e sim o suicida – disse baixinho, mas bem audível: "babaca".

Logo que vi Luan se virar com o mesmo olhar psicopata no rosto, entrei rápido em sua frente e pisei com toda força da minha alma no pé de Phil. E quer saber? Doeu. Foi o suficiente para mantê-lo ocupado com a própria dor e, também, distrair Luan até podermos sair dali sem maiores conseqüências. Enquanto eu virava de costas e chegava rápido até a porta, resistindo ao desejo de, como da outra vez, voltar e cuspir na sua cara inglesa, vejo três garotos da nossa turma se aproximarem e irem em sua direção.

Obviamente eu queria acabar com aquilo de uma forma marcante, batendo a porta e tudo, mas a curiosidade me pegou e não pude sair antes de ver o quê eles pretendiam se metendo na confusão. Os três acabaram se posicionando em volta de Phil. Delano, o único que eu conhecia de fato, propositalmente ficou entre nós.

Assim que Phil não pode mais me ver, aconteceu uma coisa estranha. Ele segurou a cabeça com as duas mãos e apertou as têmporas, suspirando alto. E aí, perguntou:

— Cara, que dor. O que foi isso?

Aí eu já não entendia mais nada.

Quer dizer, como assim?

Olho para Luan, que ainda encarava o chão com raiva, porém, com um ar pensativo nos olhos e percebi que alguma coisa além da minha compreensão estava acontecendo. Quer dizer, Luan, Delano, todos os outros pareciam saber de algo que eu claramente não entendia e, quando estava pronta para perguntar o que era aquele clima todo, Delano, ainda sem se mover, diz:

— Acho que é melhor vocês irem agora.

Mesmo sem entender, pensei por alguns segundos e decidi seguir a instrução. Não sei ao certo por que, mas de repente me vi olhando para o rosto de Delano e confiando nele.

Acho que não tinha falado sobre Delano antes, mas a verdade é que nos conhecemos há anos. Ele é uma das pessoas que sempre estiveram por perto, na mesma classe, esbarrando comigo pelos corredores, mas, infelizmente, não fazem mais parte da minha vida. O que me incomoda, de certa forma, porque há uns três anos costumávamos conversar e eu sempre senti grande afeição por ele. Gostava da sua companhia.

Mas, como aconteceu com todos os caras que eu convivi, ele se apaixonou. De uma forma não recíproca. E acabou sendo apenas mais um dos muitos que se pouparam da minha presença.

Passei dando um leve toque em Luan, esperando que me seguisse. Para o bem geral de nós três, Luan entende o recado e, junto de Nara, me acompanha na saída apressada sob o silêncio do pátio.