domingo, 22 de novembro de 2009

Capítulo 13 ~ Bruxa

Lune, isso é interessantíssimo!

Quer saber? O céu está lindo hoje.

É verdade, bem azul.

E adoro quando as nuvens começam a tomar forma de alguma coisa. Olha, aquela ali parece a cabeça de um dinossauro. E aquela outra parece um pato e a outra… uma furadeira elétrica.

— Isso é incrível, tem idéia de que, se essa lembrança voltou depois de tanto tempo, muitas outras podem vir?

É, eu nunca aprendo. Estou novamente na grama. Mas creio ser melhor desta vez, já que aqui é um canto fora de atenções ao lado da quadra de futebol e bate bastante Sol (o.k., mesmo se não batesse, já são duas da tarde, então, sem orvalho hoje). Claro, ainda há garotinhas me olhando como se eu fosse uma criatura bizarra, mas o número diminuiu consideravelmente.

Perdoe-as, elas não sabem o que fazem.

— E isso do colar, meu Deus!

Eu gostaria de não ter que ouvir Nara. Deixar isso passar, apenas para abafar um pouco o assunto, sabe… mas no momento é mais vantajoso agüentar firme a falação e continuar sentadinha aqui, na beirada da quadra de futebol. Sabe quem está jogando? Adivinhe! Aposto que você acertou.

Cara, ele é maravilhoso, até quando está com o cabelo colando na testa e com o uniforme largado assim… quer dizer, estamos numa aula livre, o jogo foi combinado às pressas e ele não teve tempo de se trocar. Só tirou a camisa branca, ficando com a regata preta de baixo, colocou chuteiras e prendeu a gravata no cós da calça para não perdê-la – e vou dizer, essa gravata vermelha pendurada perto do ilíaco é uma coisa.

Eu já tinha notado que Luan sempre usa outra camiseta por baixo do uniforme. Quer dizer, o cara tem estilo.

… Hum.

É pra ser sincera? Ele ficaria muito melhor se tirasse a preta também.

— Lune, está prestando atenção em mim?

Ah, olha uma borboleta.

Olho para meus sapatos e vejo os pequenos riscos no vermelho brilhante. Fico pensando se eu poderia entrar no fantástico mundo de Oz com eles. Preciso de novos urgentemente, apesar de um paninho com água já resolver boa parte do problema. Sabe, meu pai sempre brigava comigo por sujar todas as minhas roupas e não ter uniformes limpos para usar no dia seguinte. Nesses casos, normalmente, eu ligava para Nara – a tagarela de plantão – e pedia suas roupas emprestadas. O uniforme ficava um pouco mais curto, mas ainda assim servia muito bem, já que ela (agora) é magrinha e coisa e tal. No fim das contas, já deve ter uns três anos que ela me convenceu a sempre deixar um limpo, de reserva, no armário do colégio – ignore o ocasional problema com as meias no primeiro dia de aula… qual é, era o primeiro dia, não esperava que eu me lembrasse de tudo também.

— Ah, Lune – ela fala com uma voz arrastada e solta um suspiro. Nara continua falando sem parar e eu não agüento mais. Ruborizo um pouco, olhando para ela – será que não entende?

— Não, não entendo – fecho a cara e olho para o lado oposto. Odeio quando esta cidadã sentada no balanço à minha direita começa com esses assuntos, porque, bom, eu sei bem em que ponto ela vai chegar.

Eu acabei de lhe contar sobre ontem, sabe, o que eu lembrei, e contei mesmo sabendo que ela viria com esse papinho de anos. Bom, eu não pretendia realmente falar nada, mas Nara me conhece bem demais. Percebeu algo de estranho, perguntou se estava tudo certo… e eu sou péssima para calar a boca. Não adianta, não sei mentir.

A única coisa que não cheguei a relatar realmente foi o detalhe, aquele pequeno detalhe, da coisa das borboletas brilharem. Essa informação eu tive a consciência de guardar, apesar de eu ter quase certeza de que o brilho era culpa da minha imaginação fértil e da minha memória falha. Nem valeria a pena compartilhar a informação.

Ah… também não contei a coisa do medo terrível da nuvem. Não. Esse tipo de coisa é melhor ignorar, definitivamente. Bizarro demais para ficar pensando. Hoje eu acordei estranha, sem me lembrar de nada do que aconteceu depois de ter corrido como uma louca na rua. Na verdade, nada estava muito nítido tirando as borboletas, o colar e o medo agudo ainda machucando o peito. Levantei da cama com a cabeça latejando, pensando em como havia ido até meu quarto. Eu apaguei completamente depois que atravessei a porta.

Mas não quero pensar nisso. Mesmo. Já me chamaram a atenção milhares de vezes na sala, perdi a consciência por alguns segundos, bati com a cabeça na janela, fez o maior barulho e todo mundo riu de mim, só porque não conseguia parar de pensar em tudo isso. Estou estressada mesmo, quase chorando.

Tá, não é para tanto. Eu não choro nunca.

E o pior é que é verdade.

— Lune! – ela se levanta irritada e põe os braços na cintura, parecendo muito com minha avó quando eu aprontava alguma – Eu não sei o que está acontecendo com você, mas você está agindo como uma criança!

Viro minha cabeça tão rápido que ela até estremece. E creio que meu olhar arregalado também a fez parar e pensar no que tinha dito. Ela se sentou novamente no balanço onde estava e, lentamente, começou a se mover para frente e para trás. Eu também me afundei na grama, refletindo. Pela primeira vez na minha vida alguém disse que agi como se não tivesse mais idade do que realmente tenho. E com razão.

Como sempre faço quando estou pensando, pego meu colar, agora com o peso normal, e brinco com ele. Cada ranhura, cada rajado dentro do vidro, parece que carrega um significado. Pelo menos é o que sinto.

Desde que ele começou com esses fricotes de choque, engorda, emagrece, lança ondinhas de formicações é que ando perdendo as estribeiras. Também desde aquele garoto aparecer. Não consigo entender esses efeitos… até… até começo a pensar se Nara não teria mesmo razão.

Meu Deus, que idéia idiota. Nunca acreditei nem será agora que vou dar ouvidos às suposições fantásticas dela. É uma idéia no mínimo ridícula. Sem falar que, sei lá, ontem eu estava tão estranha e com a cabeça tão virada… não seria de se admirar que tivesse pirado. No mínimo inventei coisas por causa do medo, igual às ilusões de ver um duende gigante no lugar de uma colina de roupas, quando as mães – e pais, no meu caso – apagam as luzes do quarto.

"É só sua imaginação", eles dizem. "Está apenas com medo".

— Lune… – ela diz vagarosamente, quase num sussurro, mas eu a corto rápido.

— Não, Nara. Não adianta, não importam quais sejam seus argumentos, é uma idéia sem pé nem cabeça. Você não entende? Não. Faz. Sentido.

— Eu sei que não, mas não há outra forma de explicar!

— E você acha que alegar bruxaria é uma boa forma de explicar? – soltei de uma vez e ela estremeceu, sentindo a dor da alfinetada.

Não, é sério, não estou brincando. Ela realmente acha que sou uma bruxa, feiticeira ou o escambau. Eu não entendo por que ela sustenta essa idéia há tanto tempo, mas que importa?

O pior é que, no fundo, ela aparenta ter vergonha de acreditar numa hipótese dessas, mas mesmo assim não desiste de falar: "mas, Lune, olhe só para você, você não é normal".

— Lune… quantas pessoas você conhece que têm olhos amarelos, nunca ficaram doentes, têm orel… – eu lhe mando um olhar mortal e ela engasga – bem… você sabe, todas essas coisas. Você tem até um colar que dá choque e parece ter vida própria. Você sabe, de certa forma, possui alguma coisa com a natureza, com os animais, que ninguém mais tem.

— Se você disser mais uma palavra sobre tudo isso eu levanto daqui e vou embora – digo e tampo os ouvidos. Na mesma hora percebo que ela está me olhando com a cara de "está vendo?" mais triste do mundo. E eu, bom, de mau humor e percebendo minha infantilidade, volto à posição normal.

— Desculpe – falo depois de um silêncio constrangedor. Ela me dá um sorrisinho carinhoso e olha para o chão, parecendo sem graça.

Eu não gosto de estragar os planos de Nara, mas… é uma idéia absurda. Quer dizer, eu tenho olhos amarelos, nunca fiquei doente e… todo o resto. Quanto ao negócio da natureza, eu apenas gosto muito dela e a respeito. Nada mais que isso.

Mas bruxa já é demais.

Bem, sob outro ponto de vista, reconheço, se nós estivéssemos na época da inquisição, com certeza eu seria queimada na fogueira. De cara.

"Olha, ela tem olho amarelo!".

"Legal, vamos queimar?".

Graças, tive mais sorte.

— Lune, é só… você precisa aceitar que se não há outras formas de explicar… bom. Algo a mais tem que ser. E essa coisa, das suas memórias… você passou tantos anos no escuro, sem se lembrar de quase nada e agora, de repente, você lembra? Ainda mais com tudo isso acontecendo… o colar, tudo. Talvez se você desse mais abertura a essas coisas, aceitasse um pouco mais, lembraria de muitas outras coisas.

— Para quê? – lanço a pergunta com agressão. Sentia meu corpo reagindo à irritação, a vontade incontrolável de estalar os dedos, a necessidade de respirar com força. Nara percebeu isso, logicamente, mas teve a paciência de respeitar.

Devagar, ela levantou do balanço e se agachou a meu lado. Encarei seus olhos, surpresa com sua expressão controlada e… penalizada. Ela estava com pena de mim.

— Para, quem sabe, conseguir se lembrar melhor de sua mãe. De sua avó. Lembrar de quem eram, de quem você é. Foi isso que sua avó disse, não foi? Que estaria com você desde que se lembrasse dela.

Assim que disse essas palavras, Nara beijou minha testa com carinho e saiu de perto. Não por que realmente precisava, acho, mas porque sentiu ser a hora certa para me deixar sozinha. Eu a assisti sair dali, mas não a via realmente. Apenas fitava suas costas enquanto minha cabeça rodava, pensado no que disse. Minha avó. Eu realmente gostaria de poder lembrar melhor dela. De seu rosto. Eu ainda via sua silhueta em minhas memórias, seu perfil enquanto cozinhava para mim. Mas… não da forma como costumava. Antigamente eu poderia desenhá-la em uma folha de papel, cada ruga, cada tipo de sorriso. Agora… já é mais difícil ver seu rosto. E isso é a última coisa que eu gostaria de perder. Seu rosto em minhas memórias.

Enquanto viajo nas minhas próprias imagens mentais, perco a noção de mundo. Deixo até de ver Luan correr pelo campo e, com certeza, se uma bola viesse em minha direção novamente, eu não teria a mínima noção disso. Por isso, quando Luan se apóia de costas na trave do balanço ao lado, eu saltei tão alto com o susto que meu traseiro doeu ao bater novamente no chão.

Esperava o quê de uma pessoa passando por possíveis problemas psicológicos permanentes?

— Pensando em que? – ele pergunta, fazendo uma pausa para eu respirar – Assustada?

Eu o olho irritada, mas, na verdade, com o coração saltitando de alegria. Seu sorriso é lindo. Sua presença é maravilhosa. Ele está sorrindo para mim, achando graça no susto. Sinto o calor do seu corpo roçando meu braço, mesmo estando à quase um metro de distância.

Espera, é uma distância bastante grande para isso.

— Um pouco – respondo e olho para o chão, sentindo a penugem da nuca se arrepiar.

Estou tentando disfarçar, o.k.? Dá um tempo.

— Algum motivo especial?

— Não, só não esperava. Se estiver procurando Nara, ela foi até a secretaria – digo tentando não demonstrar interesse. Quer dizer, eu nem sabia realmente se ela estava na secretaria. E também, eles andam conversando tanto ultimamente. Bom, na verdade não, só na enfermaria, mas ao contrário de mim acho que ela não tem medo dele. Certo, também não tenho, ele apenas… me deixa estranha. Fico suscetível ao ponto de deixá-lo me assustar. Ou me assustar por causa dele. Tanto faz, alguma dessas duas frases faz sentido?

— O que te faz pensar que estou procurando Nara? – ele diz com um sorriso divertido, agachando-se ao meu lado.

— Bom, achei que quisesse… – respondi sem jeito algum, olhando sem disfarçar para o desenho firme das suas costas.

Oh, Deus.

Perto demais, perto demais. Estou começando a suar. Quase tanto quanto ele.

Deus, ele acabou de sair do jogo, o cabelo está com algumas mechas coladas na testa e posso ver a pele molhada dos seus braços refletindo a luz do dia. Não faço idéia de por que isso é tão atraente, mas, meu Pai, é. Demais.

Brinco com a bolinha do meu colar de um jeito nervoso, rezando para que ela não me dê uma surpresinha ou algo do tipo. Luan olha para mim com atenção.

— O que seria isso?

E então, que os anjos me tenham, esse cidadão que não deve ter nada na cabeça fez algo que ninguém nunca fez antes.

Tocou no meu colar.

E pior. Eu deixei.

E não aconteceu nada. Absolutamente nada.

Não que eu esperasse algo acontecer. Mas… que droga é essa? Ele me toca e eu levo choque, ele toca na porcaria do vidro (ou cristal, dane-se) e nada acontece?

Me sinto até decepcionada.

Luan continua sustentando uma expressão interrogativa e meio que começo a gaguejar. Perto demais, perto demais.

— Anh… é… foi um “pesen” – pigarro – presente da minha avó – merda.

Ele baixa os olhos para a peça, observando-a com uma atenção minuciosa.

— É bonita – diz, por final, e solta. Assim que a jóia bate no meu peito, uma onda calorosa se expande por tudo e deixa meus dedos dormentes ao passar por eles – gosta dela?

Pisco os olhos, meio confusa.

Nada de choques, nem sensações desagradáveis. Um calorzinho reconfortante. Mas acho que ele percebeu que algo havia acontecido, pois sem querer fechei os olhos e fiquei meio chapadona.

— Da sua avó – ele acrescenta.

Aceno de um jeito meio patético que sim, gosto dela. Eu poderia ter dito que não faço a mínima idéia de onde ela está, mas eu não consegui raciocinar o suficiente para formular uma continuidade de conversa. Não sei por que motivo ele sorriu. Olhando bem nos meus olhos…

— Imagino.

— Por quê? – pergunto, meio sem conseguir formar os sons adequados.

— Você ficou com um olhar meio doce, de repente.

Um olhar meio doce. Um olhar meio doce! Meu Deus, alguém me mate. Essas palavras vieram quase ritmadas até meus ouvidos, tanto que não pude responder. Ao invés disso, me deixei levar por minha perplexidade (também doce!) durante um bom período de silêncio.

— Ah, eu tenho que te agradecer.

— Pelo que? – mal penso na pergunta, deixando-a sair automaticamente pelos meus lábios. Minha cabeça voa em torno de outras coisas. Coisas doces.

— Porque graças a você agora eu tenho compromissos toda terça-feira.

Não entendi o que ele está tentando me dizer. E Luan deve ter sacado, pois logo explicou e resolveu o problema.

— Eu entrei para o time. De futebol. E só se convenceram de que eu estava mesmo apto para entrar quando chutei aquela bola direto na sua cabeça. Disseram que foi um chute realmente bom, mesmo que a mira precise melhorar – ele termina de falar sorrindo para mim e eu acabo percebendo como estamos próximos. Vagamente me pergunto se isso é bom ou não, sabe, o fato dele ter entrado para o time porque mandou um canhão direto na minha cabeça. Mas ele parece achar que é, então está tudo lindo. Confesso que minha atenção está muito mais presa em como suas coxas formam uma linha perfeita quando Luan está agachado assim.

Então.

Além disso, ele continua me olhando, bem nos meus olhos…

Tem alguma coisa com o sorriso dele, estou falando sério.

— AI! Qual é, otário! – mais do que de repente, a pessoa, há segundos ao meu lado, berra e dou um pulo de uns quinze metros – exagero, exagero. Ergo a cabeça, meio zonza, para ver o que aconteceu e Luan se pôs em pé, parecendo extremamente irritado. Noto suas mãos. Uma está colada em seu ombro, enquanto a outra segura, sem dificuldades, umas daquelas bolas de futebol menores.

Eu já falei sobre as mãos dele, não falei?

Luan parecia lindo olhando assim, desse ângulo. De baixo. Seu maxilar parece incrivelmente maior.

De repente ele atira a bola com força para o campo, acertando bem na cabeça um indivíduo que estava preocupado demais rindo sem parar para se ligar na revanche. Reconheço de longe os cabelos dourados de Phil, o infeliz que não desiste de mim.

Eu já vi caras virem falar comigo do nada, pedirem por uma ida ao cinema, um lanche juntos ou, até mesmo, uma passadinha "rápida" em suas casas. Mas todos costumavam me deixar em paz depois de uns três foras. O mais insistente, até agora, havia sido um que ficou, por um mês inteiro, jogando bilhetinhos e me comprando lanches na cantina. E, mesmo assim, parecia estar só querendo agarrar mais uma. Acho que eu era considerada como um tipo de prêmio para ele. Agora, esse Phil está ficando chato.

Uma idéia me ocorre e eu me levanto do chão.

— Está tudo bem? – pergunto, pondo a mão no seu ombro afetado. E considerando que o tal ombro era o oposto a mim, digamos que… ficou uma cena interessante meu braço atravessando a frente de Luan, enquanto minha outra mão pousava inocente sobre sua cintura. É claro que, quando fiz isso, tive vários tipos de sensações, mas nem de longe foram desagradáveis.

Luan vira o rosto para mim, parecendo sair de algum transe mental de fúria. E, mais sensacional ainda: após abrir um meio sorriso, sobe confortavelmente seu braço (o que não foi prejudicado por um míssil) e me envolve com ele. E permanece assim, como se fosse a coisa mais natural do mundo. O esperado. O certo. O cabível. E mais um monte de palavras como essas.

Jesus!

— Está, sim… tudo bem – e abre um sorriso maior. Senti minhas pernas se acovardarem.

— Essa doeu, não foi? Tem que ver isso se estiver doendo muito – Nara se aproxima de nós com um ar divertido. É incrível como ela consegue sempre chegar na hora certa para assistir a confusão. Acho que a bruxa aqui não sou bem eu.

— Não, não é nada. Ele não chutaria tão forte nem que fizessem nascer uma perna nova – Luan brinca, tirando risadas de nós duas.

— Você é meio obcecado por cabeças? Sempre acerta a cabeça das pessoas – Nara faz a pergunta com uma voz inocente demais para ser verdadeira.

— Dependendo da pessoa, sim. Dependendo da pessoa, não – ele solta uma risadinha divertida e olha para mim – diferente de algumas pessoas.

Eu pisco para ele. Não entendi essa.

— Como é?

— Como é o quê? – ele rebate a pergunta, com um sorriso maroto surgindo no canto direito da boca.

— O que você quis dizer com isso, aí. Tinha um duplo sentido, não estou louca.

Ele ri de um jeito encantador, jogando a cabeça para trás e eu me delicio com isso. Sua risada é tão contagiante que quase não resisto ao ímpeto de acompanhá-lo.

— Não sabia que você era cheia de duplos sentidos, mente poluída – ele diz, cutucando minha têmpora com o indicador. Fácil, obviamente, pois, apesar de eu ter tirado a mão de seu ombro, continuei parada na mesma posição. Ali, juntinha dele. Ou seja, muito, muito perto. Colada, praticamente.

O mais estranho, na verdade, foi não ter me dado conta disso até perceber que ele não esticou o braço nem um pouco para me tocar.

Ruborizo até sentir que posso fritar um ovo na bochecha.

— Até mais tarde – Luan diz e caminha em direção aos bancos para pegar sua camisa. O caminho que seu braço desenhou enquanto estava em minha cintura lateja, como se estivesse gritando, implorando por sua volta. E eu me arrepiei inteira. Não entendi o porquê do “até mais tarde”, se já estamos praticamente na hora de ir para casa, mas deixa para lá. Estou em choque. Isso foi maravilhoso demais para que eu não me sinta extasiada.

E, também, é admirável que ele esteja assim, andando normalmente. Se eu tivesse levado uma bolada daquelas no ombro, estaria me revirando no chão, como uma lombriga com epilepsia.

— Então, vejo que está melhor – tenho a impressão de ouvir Nara. Não respondo, porque ainda estou ocupada demais observando as costas triangulares de Luan. Nem ao menos cheguei a prestar atenção nela. Claro, isso antes dela me sussurrar:

Muito bem, Srta. Deslumbrada, vamos sair daqui, chega de atenções por hoje.

Só então percebi que todos os caras do campo não estavam jogando, mas me olhando com uma expressão incrédula no rosto.

domingo, 8 de novembro de 2009

Capítulo 11 ~ Borboletas

Como pode um colar dar choque?

Isso é estranho demais.

Quanto mais eu penso, mais transtornada fico. Não são só choques e tonturas. Mas também formigamentos, a forma como fiquei quando o vi pela primeira vez… minhas mãos, mesmo depois de soltá-lo, ainda formigam na palma.

Qual é, eu não sou idiota, consigo perceber que tudo isso tem alguma ligação com Luan. Sempre, em todos os momentos em que ele está perto, alguma parte do meu corpo formiga, seja o peito, sejam os braços, as mãos e até… os pés (pensaram outra coisa?).

Das primeiras vezes os efeitos pareciam mais fortes. Por exemplo, o choque que senti pouco antes de desmaiar pareceu muito mais forte do que o de agora. Claro, eu posso ter desmaiado pela pancada, mas não falo sobre o desmaio. Falo da sensação.

O que será isso? Vidro? Nunca ao menos parei para pensar sobre este colar… pode um vidro dar choque? Acho que não, vai saber… com toda a coisa dos átomos, nunca se sabe. Mas eu nunca me machuquei numa janela, pelo menos.

Talvez não seja vidro.

É pesadinho… e é resistente. Todo mundo sabe, vidro é um material meio vagabundo, sem contar que lasca por nada. Agora, analisando assim de perto, essa coisa não chega a ter um mísero risco.

E se for… algum tipo de cristal?

Poderia, não poderia?

Que eu saiba, Cristal também risca. Ou existe algum tipo de Cristal poderoso “inrriscável”? (Eu sei, foi um neologismo horroroso).

Lembro das palavras da minha avó, ao me entregar essa jóia. "Tome isso e cuide, pois ele servirá para que não se esqueça de toda sua vida aqui e, mais tarde, lhe ajude a descobrir quem você é. Se você não me esquecer, em algum lugar nós ainda estaremos unidas”. Me envergonho em saber que só venho a pensar nisso depois de tantos anos. Cinco até quase dezessete. Um período longo, não?

“Quem sabe não estivesse madura o bastante pra pensar”.

É. Quem sabe.

O pior é que passo a tarde toda refletindo sobre essa fatia profunda da minha vida. A tarde e também parte da noite, afinal, sobre o que mais as pessoas pensam enquanto caminham sozinhas, por um trajeto desabitado e praticamente sem iluminação? Na vida. Meio frustrante que, no fim, minha única conclusão é: ou o colar não é normal, ou eu não sou normal (jura?) ou o anormal é ele, Luan.

Coisa que eu já sabia desde o começo.

Hum… talvez eu devesse ter aceitado a carona oferecida pela mãe de Nara. Está meio assustador aqui. Fui visitar minha doce amiga após a aula e demorei demais. Mas, vamos lá Lune, aja como a garota corajosa e otimista que é. Este é um momento perfeito para refletir, ter paz consigo mesma… há algumas estrelas no céu, a Lua está linda, tudo meio escuro, silencioso…

Que dá medo, dá.

Certo, quem estou tentando enganar, já disse que sou covarde.

Mas, tenho que aprender a controlar meus nervos, como já dizia Bela, para Fera. Uma coisa que minha avozinha estava sempre falando nos tempos felizes da minha infância, é: o medo só atrai o medo. Inclusive ela era cheia dessas frases reflexivas. Sempre me dizendo para enfrentar as dificuldades, que fugir e se acovardar não é dignidade de espírito, que a coragem é apenas o medo suprimido e blá-blá-blá. Pelo amor de Deus, eu tinha cinco anos. Se não menos (não tenho culpa, não lembro ao certo quanto tempo fiquei por lá).

Bom, se eu consigo lembrar disso até agora, algum efeito teve. Não é que a velha era mesmo surpreendente?

Agora… acho que estou me lembrando de alguma coisa… mas uma guerra? Ah! Não, era um sonho, esquece. Eu estava tendo algum pesadelo realmente ruim. Algo a ver com uma guerra e pessoas caídas por todo o lado… – credo, que visão horrorosa – eu acordo gritando, e então…

Espera.

Borboletas?

Paro no meio da calçada e cerro os olhos, pesquisando nos arquivos mais profundos do meu cérebro, fazendo esforço para ver melhor. Com a lembrança estranha até perdi a linha de concentração. Uma lembrança frágil. Não posso perder isso, não posso deixar essa lembrança cair. Se ela cair, se espatifa como uma taça de cristal (desculpe pela metáfora nada criativa). Vamos, Lune, concentre-se.

A janela aberta… cortinas voando… sons de passos apressados… provavelmente da minha avó. Enquanto isso… borboletas? Sim, tinha borboletas. Mas estava escuro, como eu poderia vê-las tão nitidamente? Mal podia identificar o resto do lugar, a não ser que…

Elas brilhassem.

Que absurdo, borboletas não brilham.

Continuo relutante minha caminhada, ainda enfiada dentro das tais memórias.

Sim, não há dúvidas, eram borboletas! E, mesmo sabendo que não brilham, na minha cabeça estão brilhando claramente, coloridas e ligeiras, deixando um rastro sutil de luz. E eu não parecia me admirar com elas.

Como pude esquecer?

— Ah, o que é isso agora!?

Primeiro é choque e agora essa porcaria de cristal/vidro/sei-lá-o-quê decide ficar mais pesado? Tudo bem, já não é exatamente leve, mas nada como isso! Não vem não, eu senti aumentar o peso sim, exatamente na hora em que ouvi algum barulho, logo ali atrás daqueles arbustos…

Acho que estou ficando cada dia mais neurótica.

Ergo a cabeça, procurando algo entre os jardins ou qualquer outro ruído, mas a única coisa que ouço são os latidos distantes e enfurecidos de Roget, o cachorro da minha vizinha estranha.

Essa é boa, agora, além de um forte grau de neurose e um colar possuído, ainda tenho que ficar ouvindo ruídos suspeitos por aí.

Estou desesperada!

Não. Calma. Ouça as palavras da velha sábia. O medo só atrai o medo. Calma Lune, está precisando de um psicólogo. Dêem um psicólogo para Lune!

Deve ser só um gato.

Não, não, eu tenho que me certificar de alguma coisa, mas o que é, o que é…

“A Lua”.

Olho para o céu.

Uma nuvem imensa está se aproximando, preguiçosa, da Lua Cheia.

NÃO!

Mais uma vez no dia, corri desesperadamente, corri sem pensar e sem olhar para trás. Meu coração palpita puro medo e minha testa está pingando. Avisto minha casa se aproximando e olho novamente para a nuvem, agora começando a cobrir a pontinha da Lua. Uma onda de terror ainda mais intensa gela meu sangue e, com meus últimos fios de fôlego, acelero ainda mais. Não faço idéia da minha velocidade, mas lágrimas escorrem pelo meu rosto, por causa do vento frio. Meu peito dá saltos de felicidade quando entro feito um tufão pela porta e desmonto no assoalho do hall, sorvendo quantidades extensas de ar para suprir a sede dos pulmões.

Amém, estou em casa.